Felipe.Goularte 07/02/2018
Uma Sequência Divina
Ler esse livro sem expectativas é difícil, afinal William Gibson tinha a complicada missão de dar continuidade ao trabalho iniciado em Neuromancer, particularmente, um dos meus livros preferidos de todos os tempos. Claro, isso tudo já foi escrito há muito tempo, e a saga do Sprawl é amada por muitos. Apenas mais motivos pra que minha expectativa fosse às alturas.
Vamos a história, o enredo se divide entre o ponto de vista de três diferentes personagens. Primeiro somos apresentados a Turner, um mercenário especialista em deserções de empresas, isto é, ele é contratado por grandes corporações multinacionais para “roubar” os melhores pesquisadores de companhias rivais. Turner acabou de passar por um grande acidente em uma missão, no qual escapou da morte por um triz, e pretendia se aposentar. Porém ele é chamado para mais uma missão, e ao perceber que sua vida de aposentado era uma mentira, decide retornar ao negócio.
Logo em seguida, introduz-se Marly, ex-dona de uma galeria de arte em Paris. Ex porque ela se envolveu em um escândalo ao vender uma obra falsa, tendo sido enganada pelo próprio namorado para isso. Ex-namorado agora. Deprimida e sem esperança, ela vive no apartamento de uma amiga, imersa em um círculo infinito de auto-pena. Porém em um dia qualquer ela recebe uma proposta um tanto inusitada: o maior comerciante de obras de arte, dono de uma empresa gigantesca e um dos homens mais ricos do mundo oferece a ela um emprego. Um emprego especial somente para ela.
Por fim o último dos protagonistas, Bobby Newmark conhecido como Count Zero. É um garoto do subúrbio de Nova Jersey, um lugar chamado Barrytown, dominado por gangues e sem grandes expectativas de crescimento para qualquer um dos seus moradores. O Count no entanto sonha grande, pretende treinar e se tornar um grande cowboy (=hacker), podendo assim finalmente abandonar esse maldito lugar, porém em seu
primeiro teste na matrix ele é pego por um ICE (=antivírus) e morre. Ou pelo menos é o que deveria ter acontecido, até uma menina aparecer na matrix e salvá-lo do destino iminente. Ele ainda não sabe, mas a aparição dessa garota vai lhe meter em problemas inimagináveis.
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Os três personagens possuem capítulos alternados, com seus inícios de história bem diferentes um do outro. Diferente até demais. De início achei impossível que as três histórias estivessem todas interligadas de qualquer modo, porém o enredo imensamente complexo vai se fechando aos poucos de forma fantástica, podendo-se perceber as narrativas se aproximando aos poucos. No fim tudo faz sentido. Spoiler aqui: o desfecho das histórias no entanto me pareceu contrastar demais com o restante do livro. Depois de horas acompanhando um enredo cheio de minúcias, complexo e intrincado, um final tão simplista simplesmente não combinou. A verdade é que a solução do gigantesco problema que os protagonistas enfrentam é alcançada muito facilmente, tendo pouquíssima influência dos personagens principais. Foi como cair do céu digamos…
William Gibson enriquece ainda mais aqui seu universo cyberpunk. Acho genial como ele reimagina conceitos tão marginalizados e tão facilmente esquecidos em obras futuristas do gênero, como a religião dos povos haitianos aqui bem presente. Ao mesmo tempo a escrita dele é rica demais, de encher os olhos e deixar a imaginação fluir, por exemplo quando ele compara o sistema de metrô de Nova York à um pulmão, com grande quantidade de ar sendo empurrada de um lado para outro.
As referências a Neuromancer estão aqui também é claro. Vão muito além de referências, já que percebe-se como os acontecimentos do livro passado tiveram real repercussão no universo. O ritmo desse segundo romance se assemelha muito ao do primeiro inclusive, novamente apresentando personagens próximos de como somos na vida real, cheios de defeito. No entanto preciso admitir que os três personagens não chegaram nem perto de me cativar tanto quanto Case. Bobby me irritou bastante durante a leitura na verdade, apresentando pouca evolução no decorrer dos acontecimentos. Spoilers novamente: apesar de ter sido parabenizado como herói pelos companheiros no final do livro, não acho ele fez grandes coisas. Foi apenas um sortudo telespectador, observando outros fazerem o trabalho. Não que eu não estivesse torcendo por ele, claro. Interessante também notar como o final de Count Zero é mais leve do que o de Neuromancer, um respiro em relação a melancolia do primeiro.
Em resumo, William Gibson alcança novamente um alto nível em Count Zero, com um enredo que prende, personagens instigantes, um universo mais rico do que Herr Virek, e uma escrita cheia de detalhes que cativa a imaginação. Leitura obrigatória para fãs do gênero cyberpunk e do sci-fi no geral.