Flávia Menezes 24/08/2023
? WHO'S GONNA DRIVE YOU HOME, TONIGHT?
?O Ano do Pensamento Mágico? é um livro de não-ficção que conta a experiência de luto vivido pela escritora, jornalista, ensaísta e romancista americana Joan Didion, após o falecimento repentino do seu marido, o roteirista estadunidense John Gregory Dunne.
Não estava nos meus planos ler esse livro, mas depois de tanto vê-lo passando pelos feeds do Instagram, ou mesmo nas leituras gerais aqui do Skoob, unido a curiosidade de novamente ler algo escrito por um jornalista (o tipo de narrativa pelo qual Capote me fez ficar fascinada!) aguçou ainda mais a minha vontade de dar uma olhada no que a Joan tinha a me dizer.
Não vou negar, mas esse não é um livro nada fácil de se ler. É fato que falar sobre morte e luto é um tema por si só muito sombrio, deprimente, e a Joan não nos poupa de todos os detalhes, nem mesmo de suas várias pesquisas sobre o assunto.
Mas apesar dos capítulos tristes, e repletos de todos os fatos que envolveram o motivo pelo qual John Dunne deixou essa vida, esse não é um livro sobre a morte, mas sobre duas pessoas que estavam destinada a se encontrar e passar por essa vida juntas para se amar, cuidar, tanto quanto para ajudar o outro crescer, e a sonhar e construir muitos projetos grandiosos juntos.
John e Joan (desculpe ser piegas, mas eu acho tão bonitinho como o nome deles combinavam, começando com a mesma letra?) não foram apenas parceiros na vida, mas parceiros na carreira (escritores). Ao lado do marido, Joan colaborou com diversos roteiros, e era ele o primeiro a ler todos os seus textos (romances e ainda as suas colunas para o The New York Review of Books e para a revista The New Yorker), dando a ela ideias, mas principalmente corrigindo muitos dos seus erros gramaticais e textuais. John foi seu marido, seu parceiro, mas também foi o seu editor, o seu revisor, e o seu principal incentivador.
?Durante quarenta anos, vi a mim mesma através dos olhos de John. Não envelheci. Este ano, pela primeira vez desde que tinha 29 anos, eu me vi através dos olhos dos outros. Este ano, pela primeira vez desde que tinha 29 anos, eu me dei conta de que a imagem que eu tinha de mim mesma era de uma pessoa significativamente mais jovem?.
No filme ?Avatar?, por diversas vezes é usada a expressão ?Eu vejo você?. Nessas três palavras, existe muito mais do que o perceber como o outro é exteriormente, mas está implícito um aceitar tudo o que vejo, mesmo quando algo não me agrada, ou está fora dos padrões e moldes do que eu acredito. Ver o outro é ver a sua luz, sua alma, sua sinceridade, tanto quanto suas falhas (mesmo as mais feias) e aceitá-las como são sem julgamentos, culpas, expectativas ou projeções.
E é exatamente sobre isso que a Joan fala na citação acima: John a via como ela era, e a aceitava como ela era, com tudo o que ela tinha. E isso não implica em não haver brigas, em não corrigir o outro. Porque uma coisa é aceitar tudo o que o outro é, e outra é aceitar tudo o que o outro faz.
Mas é só aceitando tudo o que o outro é, é que somos verdadeiramente capazes de poder lidar com tudo o que ele faz. Porque nesses momentos mais difíceis de desentendimento, haverá um olhar amoroso que não pensará no outro como se ele fosse apenas o seu erro, anulando assim tudo o que de bom existe dentro dele (tudo o que ele é) e o que de bom ele tem a oferecer à relação (tudo o que ele traz).
E é exatamente esse olhar de amor que eu vejo nas palavras da Joan, quando diz que não envelheceu um dia sequer ao lado do John. Porque ele não olhava para a Joan exterior, mas sim para quem ela realmente era. E isso a fazia se sentir sempre a mesma mulher por quem um dia ele se apaixonou. Porque ela era a Joan do John. Não a sua idade, ou o seu envelhecimento.
Que lição de vida essa, não é mesmo? Quem é que faz isso nos nossos dias atuais? Quem é que se dispõe?
Por isso que hoje em dia se fala tanto em responsabilidade afetiva. Porque no encontro entre duas pessoas, sempre vai haver um que está mais atento. Sempre existe aquele que repara, que percebe...os gestos, as expressões, as manias, as falhas.... e se encanta com o que vai percebendo. E por que não se encantaria? Por que estar com alguém se é para olhar não para ele, mas através dele como em um tipo de efeito Poltergeist? Que sentido há nisso?
?Somos seres mortais imperfeitos, conscientes dessa mortalidade mesmo quando a negamos, traídos por nossa própria complexidade, tão incorporada que quando choramos a perda de seres amados também estamos chorando, para o bem ou para o mal, por nós mesmos. Pela perda daquilo que éramos. Do que não somos mais. Do que um dia não seremos de todo?.
Difícil ser um quando só se sabe ser dois, não é? Quando essa é a nossa melhor versão. Eu acho que isso é algo que a nossa humanidade precisa aprender mais. A deixarmos de ser tão egoístas e mesquinhos, para pensar mais em dupla. E eu preciso confessar: mas como é gostoso poder pensar assim! Que complitude isso nos traz!
O que eu achei mais bonito nos relatos da Joan, é que dá para sentir o John em cada uma de suas palavras. Era ele quem conduzia, quem decidia, mesmo sendo ela uma mulher repleta de atitudes. Mas na relação, a vida era assim, e funcionava muito bem obrigada! E mesmo quando ela queria estar sempre certa, ele a questionava todo impaciente: mas por que é que sempre tem que ser assim? Por que você sempre quer ter razão?
Mas sabe... foi exatamente essas marcas (suas correções que mostravam como ele a via, como a amava e se importava) que permaneceram na Joan depois que o John se foi. Mas não um John sozinho, mas sim o John da Joan. E eu tenho que te dizer que nesses momentos, em cada linha em que ela falava dele numa intensidade a ponto de também poder sentir a sua presença, eu chorei com ela por sua perda, e por sua saudade sem fim.
?O Ano do Pensamento Mágico? pode até não ser um livro fácil de ler por conta da sua temática, ou pelas partes em que Joan se debruça demasiadamente na sua mente racional para tentar explicar as coisas (morte, luto, terminologias médicas, diagnósticos e prognósticos...), mas mesmo sendo até um pouco cansativas algumas partes, eu não pude, em momento algum, deixar de ter empatia por ela.
Peguei esse livro e o li como se ela estivesse diante mim contando a sua história. E mesmo nas partes mais lentas, eu permiti que ela contasse a sua forma, no seu tempo e conforme a sua dor necessitasse (é fato que ela precisava falar dele com todos os detalhes, e eu não a interrompi). E ao final desse exercício de paciência e compaixão, eu me senti transformada por ela. Não por sua visão de morte, ou de perda. Mas pela sua visão do amor maduro, do relacionamento cheio de entregas e renúncias que ela viveu ao lado do seu John. E isso nunca mais sairá de dentro de mim.
De fato, eu posso lhes contar um segredo? Dizem que chegamos a esse mundo a sós, e deixamos esse mundo também sós, mas eu realmente acredito que no momento derradeiro da vida da Joan, o John estava lá para conduzi-la. E por esse tão grande amor, que nada tinha de romântico, mas de uma parceria verdadeira, é que termino essa resenha com a parte que mais me emocionou desse laço bonito que ligou John e Joan nessa vida (e certamente para além dela):
?Antes do jantar, John se sentou perto da lareira na sala de estar e leu para mim em voz alta. O livro que lia era um de meus romances, ?A Book of Common Prayer?, que estava na sala porque ele o estava relendo para ver como funcionava uma questão técnica.(?)
? Cacete! ? John falou quando fechou o livro. ? Nunca mais me diga que não sabe escrever. Este é meu presente de aniversário para você.
Eu me lembro de ficar com lágrimas nos olhos. Sinto as lágrimas agora.?
Eu também as sinto, Joan. Eu também sinto!?