Coruja 03/08/2021Se há uma certeza na vida, é a morte. É uma verdade inescapável e, nesse último ano e meio, provavelmente tivemos mais consciência que nunca de nossa própria mortalidade e também daqueles que amamos. Com mais de meio milhão de mortos apenas em nosso país, difícil encontrar alguém que não tenha perdido alguém próximo, parente, amigo, conhecido que seja. Através das notícias que nos chegam, vivemos diariamente o luto - um luto individual e também coletivo, um lamento pelas histórias e esperanças que se apagaram antes do tempo, pelos ídolos que se vão, por um senso de segurança que não sabíamos existir e que, agora sabemos, nunca voltará ao que era antes.
Foi nesse contexto que comecei a me embrenhar por livros sobre o luto: próximo a completar o aniversário de um ano da morte de tia Gilda - irmã mais velha da minha mãe, que se foi logo no início da pandemia e nos tirou o chão com a angústia de quase dois meses internada. Alguns deles estavam na minha lista há muito: C. S. Lewis e seu A Anatomia de um Luto desde que li a biografia do autor, para escrever o especial sobre Nárnia; Joan Didion e O Ano do Pensamento Mágico quando bati o olho no título e vi a sinopse; F de Falcão da Helen Macdonald, indicação reiterada de uma amiga querida. Notas sobre o Luto, da Chimamanda Adichie veio por último, mas amarrava tudo por ter sido escrito exatamente no auge da pandemia, e trazer as peculiaridades de uma perda no momento que estamos vivendo.
Escrevo sobre “as peculiaridades” do luto em quarentena e faço caretas para mim mesma. Mas não consigo deixar de pensar que viver o luto hoje - e é necessário vivenciá-lo para superá-lo - é muito mais difícil do que antes do covid. O isolamento nos obrigou a abrir mão de muitos dos rituais que fazem parte desse processo; rituais que consolam, que nos aproximam da memória daqueles que perdemos, que nos permitem buscar conforto naqueles que compartilham conosco essa ausência.
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Joan Didion escreve sobre um luto diferente em O Ano do Pensamento Mágico: a experiência de perder o marido, John Gregory Dunne, o companheiro de uma vida inteira, de forma completamente inesperada. O contexto em que tudo acontece é desesperador: a filha Quintana está internada na UTI em estado crítico, ela volta com o marido de uma visita ao hospital, eles se sentam para jantar e, de repente, ele cai no chão: é um infarto fulminante e não há nada que ela possa realmente fazer.
Durante um ano, acompanhamos esse diário - ou mais um fluxo de consciência intermitente - de como ela encara a perda do marido, a quase perda da filha (que quase que logo após ter alta, tem outro problema de saúde que quase a leva de vez), as tentativas de fazer, buscar sentido no que está sentindo. Ela se embrenha em suas memórias, lê livros de medicina, outros diários de enlutados (Lewis é uma das leituras que ela faz também), até mesmo volumes de etiqueta (de uma época em que havia muitos outros rituais em torno do período de luto).
E nesse tempo todo, ela reluta em realmente aceitar a morte de John, como se não falar disso significasse que ainda existia uma chance de as coisas mudarem, de tudo aquilo ser passageiro. Ela se recusa a se desfazer dos sapatos dele (quando ele voltar, ele precisa ter algo com que se calçar). Engraçado até que ela tem uma reação muito parecida com a da Chimamanda quando o obituário é publicado - porque se você não contar para ninguém, não fizer aquele conhecimento público, então ele não se torna indelével.
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"Quando vi a fotografia, me dei conta, pela primeira vez, do motivo pelo qual os obituários tinham me perturbado tanto. Eu permitira que outras pessoas soubessem que ele estava morto. Eu permitira que ele fosse enterrado vivo."
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Didion tenta fazer desse processo uma investigação racional, com sua busca de fontes, filósofos, médicos, psicólogos, teólogos. Mas esbarra continuamente em sua própria incredulidade, na sensação de torpor e irrealidade que tudo aquilo lhe provoca. Porque, no final, não há realmente respostas. Não há realmente um consolo, seja após uma longa doença, rápido e sem dor, um alívio para aquele que se vai, uma vida inteira bem vivida: a morte de uma pessoa sempre nos deixa profundas cicatrizes. Ela nos parte o coração e ele nunca será o mesmo depois.
O pensamento mágico pelo qual Didion se deixa levar durante um ano de seu processo de luto é um conjunto de pequenos rituais e sortilégios, acompanhado de profundas reflexões, passos que vamos tomando para pouco a pouco aprendermos a conviver com a dor. Até chegar o momento em que “temos que nos libertar dos mortos, deixá-los ir, deixá-los mortos. Deixar que se tornem uma fotografia em cima da mesa”.
(Essa resenha faz parte de um artigo maior acerca de livros sobre o luto. Deixei aqui apenas as referências diretas ao livro "O Ano do Pensamento Mágico", mas há uma certa conexão entre todas as leituras que não se costura tão bem com o corte. Para ler o artigo completo, segue o link abaixo, no blog Coruja em Teto de Zinco Quente)
site:
https://owlsroof.blogspot.com/2021/08/quatro-reflexoes-sobre-o-luto-lewis.html