Higor 30/11/2023
"LENDO PULITZER": sobre autores que surram seus leitores
É ao ler livros como "Pastoral americana" que eu me pego pensando: "puxa, como eu leio cada porcaria, não?". Óbvio que livro nenhum é unanimidade, e este está longe de ser um livro adorado pela maioria dos leitores, mas ainda assim, já na página 50, eu sabia que, mesmo ante todas as dificuldades impostas por Philip Roth (e não foram poucas, preciso confessar), esta seria uma das leituras mais incríveis do ano, quiçá da vida.
Tudo porque eu simplesmente não conseguia parar de pensar em Sueco Levov e sua vida de aparências, mesmo quando tinha que fazer outras coisas, fosse em casa, ou no trabalho, ou em interações sociais e etc, pois, mesmo em poucas páginas, eu estava totalmente imerso naquele universo americano de cristal, belo, pomposo, porém sensível, delicado, instável, e ansiava por saber a qual lugar o autor queria me levar. O efeito, embora positivo, me deixou em cacos. Sim, não só Levov levou uma surra, mas eu também, enquanto leitor, tanto que preciso de um pouco distância de Roth, e me vou me aventurar em outro livro dele depois com uns bons anos de fôlego.
Pois bem, em uma narrativa não linear, mas limpa e eficiente, acompanhamos a geração dos Levov, judeus que, após certa dificuldade para se manter na América, alcançaram o conforto e a estabilidade ao fabricar luvas de couro. O foco está em Seymour, conhecido como Sueco, um jovem atleta do Ensino Médio, famoso por suas habilidades esportivas e, principalmente, por causa de seu cabelo loiro, olhos azuis e boa aparência, que causa frisson em adolescentes apaixonadas e em pais que querem o jovem ideal para configurar suas famílias e próximas gerações.
Com um comportamento exemplar, em que abre mão de seus próprios ideais para comportar os solhos alheios, seja de pai, mãe, esposa, filha e até mesmo amigos e irmãos, Sueco mantém e alimenta o conhecido "american way of life" da maneira mais calada e submissa possível, garantindo com isso o emprego, mulher, casa e filha dos sonhos, mas não, talvez, a felicidade. Ou ao menos a genuína.
Embora até meio batido, a maneira como Roth aborda o tema da ascensão e ruína de uma vida ideal, aqui por questões políticas e sociais na década de 60, é no mínimo, aterrorizante, no bom sentido, pois ao invés de discorrer sobre sucessivas tragédias que poderiam acometer a família e fazer com que o leitor simplesmente se apiedasse, o autor optou por narrar por um viés um tanto diferente, tanto que o livro tem uma carga dramática muito mais intensa, voltada para um lado psicológico que mais se assemelha ao terror e o suspense.
Os personagens como um todo, e não somente Levov, têm seus pensamentos, expressões e comportamentos examinados à exaustão, e de forma muito inteligente, o que talvez seja o grande trunfo do livro, pois o mesmo personagem é dissecado diversas vezes, pelo ponto de vista de diferentes pessoas, logo, ela vai ser incrível para alguns, enquanto detestável para outros, o que gera uma desconfiança e uma tensão no leitor, aquele desconforto por gostar de alguém que, há 30 páginas, era elogiada como uma mulher de confiança, enquanto é interpretada como uma megera gananciosa páginas depois. A vida, meus caros, onde pessoas diferente possuem opiniões totalmente divergentes de uma mesma pessoa.
O grande trunfo também é, pensando com cautela, o grande problema do livro, pois o autor interrompe a cena para fazer mais uma análise minuciosa, quando tudo o que o leitor quer é saber o que vai acontecer naquela circunstância, naquele diálogo, naquela confuso, logo no clímax do capítulo. Logo, de incrível, a sensação que passa ao longo dos capítulos é de enfado, ou que o autor está enrolando o leitor para atenuar uma possível decepção com o que possa encontrar logo a frente.
A impressão ganha ainda mais força ao final do livro, quando se olha em retrospecto e analisa que, em uma linearidade, a história possui poucos acontecimentos, de fato, mas uma enxurrada de blocos de texto e de páginas unicamente dentro da cabeça dos personagens, com seus pensamentos e angústias que assolam não somente o pobre coitado de Sueco, mas o leitor, que o acompanha em suas aflições, devaneios, medos, divagações, como não poderia deixar de ser, e, ao final da trágica vida falsa americana, torna-se grato com o feito de Roth, mas cansado, sobrecarregado com tal fardo.
Sinceramente, eu nunca havia sentido tal sensação em uma leitura, pois ao mesmo tempo que me preocupava com Levov e sua ruína, eu estava arrependido por ter encarado tal drama, pois o peso imposto em toda a circunstância parecia demais para mim.
Para os críticos mais ferrenhos do livro, um pensamento sincero: é importante entender que as muitas referências citadas, quase todas, na verdade, tanto relativas à cultura, mas principalmente a geografia e política do país, abordadas em "Pastoral americana", passaram totalmente despercebidas durante a leitura, e tudo bem, afinal, o mais importante é que o livro se sustenta apesar disso, com sua história bem escrita e amarrada; além disso, eu não sou estadunidense, logo, não preciso conhecer com afinco a história do país, nem quem foi o 15º presidente ou o senador republicano do ano 1960, e entendo também o principal, a realidade difícil para desmitificar para muitos leitores, de que os Estados Unidos não se resumem a Hollywood, Las Vegas ou outro cenário típico de turismo.
Para quem é nativo, o livro, obviamente, faz muito mais sentido, é muito melhor absorvido e aclamado, tanto que, em listas dos melhores livros do século 20, dos últimos 25 ou 50 anos, ele é considerado o melhor livro americano, ou o segundo, perdendo apenas para "Amada", de Toni Morrison. Um peso a se levar em consideração, assim como a relativizar a ignorância do leitor ante tantas informações nacionais. Com certeza os americanos devem apanhar para entender diversas referências e situações brasileiras na recém-lançada tradução de Dom Casmurro, por exemplo.
Vencedor do Pulitzer de 1998, desbancando outro gigante memorável da época e também tido como clássico, "Submundo" de Don DeLillo, "Pastoral Americana" é, sem dúvida, aquela erva daninha no jardim perfeito americano, que causa incômodo, mas que é indiferente e resistente a tudo.
Este livro faz parte do projeto "Lendo Pulitzer".