Os despossuídos

Os despossuídos Ursula K. Le Guin
Ursula K. Le Guin
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Ursula K. Le Guin




Resenhas - Os Despossuídos


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Oz 10/01/2018

A grande sacada das boas ficções científicas é levantar questionamentos e olhar as engrenagens que movem a sociedade humana como se através de uma lupa. As possibilidades de novos planetas, estruturas sociais, políticas e tecnologias são elementos que permeiam esse tipo de literatura, mas não servem apenas como artefatos de entretenimento e de composição para um cenário que diz respeito apenas ao imaginário do leitor. Não. As boas obras desse gênero dizem respeito aos problemas humanos que enfrentamos aqui, na Terra, e procuram jogar alguma reflexão sobre nossos dilemas, ainda que, para isso, também nos jogue para um lado desconhecido do universo. Essas obras também procuram nos alertar para os conflitos e os muros que vamos construindo dentro da sociedade, ameaças constantes a uma comunhão mais pacífica entre culturas e povos. “Os Despossuídos” começa justamente assim, nos alertando sobre a ambiguidade dessa divisão:

“Havia um muro. Não parecia importante. Era feito de pedra bruta e argamassa grosseira. Um adulto conseguia olhar por cima dele, e até uma criança conseguia subir nele. No ponto em que atravessava a estrada, em vez de ter um portão, ele degenerava em mera geometria, uma linha, uma ideia de limite. Mas a ideia era real. Era importante. Por sete gerações não houve nada mais importante no mundo do que aquele muro. Como todos os muros, era ambíguo, com dois lados. O que ficava dentro ou fora do muro dependia do lado em que se estava”.

Partindo desse início marcante, vamos acompanhar a jornada de Shevek, um físico da simultaneidade temporal do planeta de Anarres que decide partir para o planeta Urras. O problema é que ele será o primeiro anarresti a ir para esse planeta, visto que Anarres foi um planeta colonizado, há mais de um século, por anarquistas urrastis que não se conformavam com o sistema capitalista de Urras. Mediante os escritos da líder Odo, Anarres foi colonizada sob os preceitos da pura cooperação. Nesse planeta inóspito, não há propriedade privada, leis, governos e nem prisões, mas há uma forte união social baseada em costumes e convenções de compartilhamento que mantém a ordem. Os anarrestis trabalham em conjunto e racionam comida em períodos de seca e fome. Também há igualdade entre os sexos, sendo que o próprio conceito de família não é muito presente, pois é natural que um indivíduo copule com qualquer outro (inclusive do mesmo sexo) caso haja consenso. Por outro lado, Urras é o planeta capitalista, que se assemelha com a Terra que nós conhecemos: um planeta de grande beleza natural, desenvolvido tecnologicamente e materialmente, mas que traz consigo os problemas sociais capitalistas: extrema desigualdade material e de gênero, individualismo exacerbado, conflitos e guerras entre países. A suposta liberdade em Urras está fortemente atrelada ao dinheiro, à propriedade.

Tendo nesses dois planetas imagens de ideais que se encontram em extremos opostos, a grande genialidade de Ursula Le Guin é ir unificando esses extremos, como se dobrasse e unisse as pontas de uma folha de papel. Para fazer isso, a autora escolheu ir alternando o foco dos capítulos. Enquanto em um deles acompanhamos a chegada de Shevek em Urras e seus descobrimentos da cultura daquele lugar, no outro voltamos no tempo e acompanhamos o crescimento de Shevek em Anarres, desde criança. No capítulo seguinte, voltamos a acompanhar Shevek em Urras, e assim sucessivamente. Essa ferramenta narrativa é muito coerente, pois vamos percebendo que, assim como Urras, Anarres também não é tão perfeita como parece a princípio, e vamos descobrindo justamente os motivos que levaram Shevek a ter decidido ir para Urras no início do livro. Da mesma forma, essa escolha de alternância entre diferentes tempos da narrativa se encaixa perfeitamente em uma das próprias ambições do protagonista: provar sua teoria sobre a simultaneidade do tempo, uma ideia de que passado, presente e futuro são uma coisa só, como se coexistissem. Haveria melhor forma de brincar com esse tema do que ir e vir no próprio tempo narrativo, também sugerindo que passado, presente e futuro se desenrolam simultaneamente? Duvido muito. O que não duvido é que essa foi, é e será uma das grandes obras da ficção científica.

Meu site de resenhas: www.26letrasresenhas.wordpress.com
Rodrigo1001 10/01/2018minha estante
Soa como um bom candidato para a minha lista de ?quero ler?. Bela resenha!


Oz 10/01/2018minha estante
Legal, Rodrigo. Se tiver pensando em ler uma ficção científica nesse ano, acho que vale dar uma chance para esse aí!




Felibalex 22/12/2022

Uma grande crítica social
A autora apresenta uma obra prima que traz conceitos muito importantes para os dias atuais, como a propriedade. De maneira maestral a distopia/utopia retratada navega entre presente e passado para conquistar os leitores com uma viagem entre duas realidades são similares mas tão diferentes. Talvez as lacunas deixadas na estória sejam intencionais, mas senti falta de um aprofundamento maior em algumas passagens. De todo modo, um ótimo livro.
André 22/12/2022minha estante
Esse foi o primeiro livro dela que li e até agora o único. Eu amei, li na época da faculdade. Estou com um outro dela aqui pra ler: A mão esquerda da escuridão.


Felibalex 23/12/2022minha estante
Eu andava bem ansioso com ele. Escolhi para ser a minha leitura de número 50 no ano, por ter sido indicação de uma pessoa importante, e uauuuu. Fez todo o sentido. Andei pesquisando sobre "a mão esquerda da escuridão" e já está na minha lista. Adorei que se passa no mesmo universo de "os despossuidos".




Marcelo.Castro 28/10/2022

Sci-fi de qualidade, com toques de utopia/distopia
Excelente obra de ficção científica, muito bem construída em termos de ambiente, conceitos, civilização, tecnologia, etc. Também traz uma boa dose de utopia/distopia, com o claro contraponto construído entre as diferentes sociedades e suas formas de organização, sem poupar críticas à nenhum dos modelos, algo que é evidenciado pela viagem feita pelo protagonista e suas experiências pessoais. Trama envolvente, muito recomendado.
eu, eu mesma e os livros 29/10/2022minha estante
Já tinha visto alguma coisa sobre esse livro, mas agora fiquei com mais vontade de ler.


Marcelo.Castro 29/10/2022minha estante
É ótimo o livro. Você vai gostar!




Herly 23/05/2021

Eu leria uma saga de 20 livros dessa história!
É impossível fazer uma resenha que faça jus a este livro, então: Leiam!
Ursula nos introduz a este universo distópico através do Shevek, nosso personagem principal. Ele é um físico do planeta Anarres que busca estabelecer relações diplomáticas e compartilhar conhecimentos com Urrás, e para isto, faz uma viagem para este outro planeta. O importante de entender aqui é que Anarres é formado por pessoas que vieram de Urrás após uma revolução anarquista, portanto existe um paralelo direto entre o nosso mundo capitalista e a sociedade de Urrás.
A partir desta premissa, o livro desenvolve diversas reflexões sobre o modo como vivemos, nos comportamos, pensamos a sociedade, o trabalho. a produção de conhecimento e diversos outros temas, é espetacular. Minha única reclamação deste livro é que a autora passa muito tempo ambientando os mundos, o que é maravilhoso, mas para mim o enredo do presente do livro ficou um pouco de lado e no clímax, eu fiquei esperando muito mais. No entanto, isto não diminui a maestria com que Ursula conduz esta história e eu leria muito mais livros sobre essa história se ela tivesse escrito. Recomendado demais!
Evvy 23/05/2021minha estante
mentira q vc n quer ler nem as trilogia


Herly 23/05/2021minha estante
kkkkkk mas dessa eu lia




Talita Hanna Cabral 25/05/2023

Ficção ou realidade?
Ursula K LeGuin nos traz em ?Os despossuídos? as características de duas sociedades: Anarres e Urrasti. Elas são resultado de uma revolução liderada por uma mulher, Odo, há centenas de anos e que separou mundos. Urrasti permaneceu com o abismo das disparidades sociais, mas divulgando ser democrática. Anarres escolheu o anarquismo, livre de qualquer órgão político e de poder. Mas será que o ser humano realmente consegue viver sem o poder? Uma leitura incrivel!
Nilton 27/05/2023minha estante
Foi um início difícil para você?


Talita Hanna Cabral 28/05/2023minha estante
Inicialmente parece confuso, mas rapidamente a pessoa pega o que a leitura tem a nos mostrar.




Bombapacth 23/03/2023

Brilhante
Nao vou mentir, fiquei interessado no livro pq achei a capa bonita. Nunca tinha ouvido falar da Ursula e nem sabia de que se tratava a história. Tive uma surpresa muito agradável depois que comecei a ler. A proposta do livro é muito interessante, e as críticas feitas pela autora são certeiras. Gostei muito.
aninha 24/03/2023minha estante
mds eu já comecei esse livro n sei quantas vezes e nunca terminei, agr tu me deixou curiosa


LAvia124 24/03/2023minha estante
nossa eu coloquei esse livro na minha tbr semana passada




A. Mendes 29/07/2021

Clube do livro 08
Este livro super me tirou da minha zona de conforto nunca tinha lido algo do tipo mas sempre tive muita vontade e foi uma experiência muito interessante. O começo foi um pouco complicado e demorei alguns dias pra pegar o ritmo mas depois se tornou uma ótima leitura. Viajei por dois planetas(luas) totalmente opostos e seus governos mais diferentes ainda, a política desse livro é incrível, não sou uma pessoa que sabe muito sobre política mas esse livro me fez querer saber mais. O final? Bem, eu não esperava algo do tipo, foi um pouco: an? Kkkk
Acho que sci-fi vai ser um gênero literário bem presente na minha vida a partir de agora.
Nilton 27/05/2023minha estante
ta sendo um desafio para mim. Ini ciei e parei a leitura várias vezes




Enzo 18/12/2022

É possível uma sociedade realmente igual?
Centenas de anos atrás, um grupo de anarquistas se isolou no planeta de Anarres para viver uma sociedade sem poder, sem posse, sem desigualdade. Hoje, um deles quer voltar ao planeta irmão de Urras, em que há belas paisagens e hierarquias. Desenvolve-se uma história que reflete sobre vida em sociedade, indivíduo versus comunidade, sofrimento e dor, existência humana.
Ursula apresenta a nós uma possibilidade de futuro melhor. Não é uma utopia, a dor e o sofrimento da vida não permitem a existência de utopias. Mas ela dá a esperança de que nós somos melhores do que imaginamos que somos, de que podemos viver plenamente, como parte do Universo, não tentando ser donos Dele.
Os Despossuídos é um livro genial. Quero conhecer mais da obra da Ursula depois dessa introdução.
magickarp 18/12/2022minha estante
Estou terminando de ler "a mão esquerda da escuridão" e fui pega de surpresa positivamente! Logo leio "os despossuídos".
É o meu primeiro contato com a autora e estou gostando muito.




Rafael467 25/05/2022

Finalmente um livro que me permita observar uma sociedade fora do capitalismo. Chega de pós apocalipse, a gente quer ter esperança de um futuro sem exploração do homem pelo homem.
cid 08/07/2022minha estante
Também tenho esperança numa sociedade que não seja centrada no lucro e na ganância.




Carlos762 09/07/2023

Em outro planeta está a porta; em nossas mentes está a chave
Confesso que quando minha amiga Ana Paula me emprestou o livro "Os Despossuídos", da autora Ursula K. Le Guin, eu não tinha grandes expectativas. Um livro de ficção científica, em que há vida inteligente em 9 planetas diferentes e que fazia algumas leituras críticas da história da humanidade não era novidade pra mim. Quem leu a série Fundação , do Isaac Asimov, sabe do que estou falando. Porém, o que encontrei nessa obra-prima da Ursula Guin foi um sopro de vida, de esperança e de frescor, num mundo em que convivemos cotidianamente com o contrário: com a morte, com os tons de cinza da rotina e com um ar que nos faz espirrar a toda hora.

Ursula conta a história de Shevek, um físico da lua Anarres. Nessa história, a lua Anarres é uma colônia "anarquista" do seu planeta Urras. Urras, por sua vez, possui um sistema parecido com a guerra fria terrestre do século XX: um país "socialista" (Thu) e várias nações capitalistas, das quais a principal é A-lo. Essa configuração poderia dar muito errado, recaindo em estereótipos, superficialidades e preconceitos. Não é o que ocorre.

A autora imagina tão bem o quanto uma possível sociedade "anarquista" plenamente desenvolvida pode parecer, que tudo nessa sociedade que nos é "estranho", é narrado de forma muito natural. Por exemplo: as ideias de competição , propriedade e prosperidade individual (em detrimento do outro) são tão estranhas a Anarres, que , quando os adultos querem dar broncas nas crianças, eles a reprimem dizendo que estão "egoizando".

Em Anarres não há polícia , advogados, juízes , nem prisões. Também não há ladrões , golpistas ou assassinos. Isso faz com que coisas muito comuns para nós pareçam muito estranhas para eles. Por exemplo:

"Eles tinham extraído a ideia de 'prisões' de episódios de A Vida de Odo, que todos os que tinham optado por estudar história estavam lendo. O livro tinha muitos pontos obscuros, e não havia ninguém em Campina Vasta que soubesse história para elucidá-los; porém, quando chegaram aos anos de Odo no forte de Drio, o conceito de 'prisão' tornara-se óbvio. E quando um professor itinerante de história veio à cidade, esclareceu o assunto, com a relutância de um aluno decente obrigado a explicar obscenidades a crianças. Sim, ele disse, prisão era um lugar onde o Estado punha as pessoas que não obedeciam às suas leis. Mas por que elas simplesmente não iam embora do lugar ? Não podiam ir embora, as portas eram trancadas. Trancadas ? Como as portas de um caminhão em movimento, para você não cair, burro ! Mas o que eles faziam dentro de uma única sala o tempo todo ? Nada. Não havia nada para fazer. Vocês viram fotos de Odo na cela da prisão em Drio, não viram ? A imagem da paciência desafiadora, a cabeça grisalha inclinada, as mãos cerradas, imóvel nas sombras abusivas. Às vezes os prisioneiros eram condenados a trabalhar. Condenados ? Bem, isso significa que um juiz, uma pessoa a quem a lei concedia o poder, ordenava que fizessem algum trabalho braçal. Ordenava ? E se não quisessem fazer? Bem, eles eram obrigados; se não trabalhassem, apanhavam. Um calafrio de tensão percorreu as crianças que ouviam, todas entre 11 e 12 anos de idade, que nunca tinham apanhado, nem visto ninguém apanhar, exceto num acesso de raiva imediato e pessoal." (P.42-3)

Além do fim do Estado, Anarres é um lugar em que também não há classes sociais. Odo, a idealizadora da comunidade "anarquista", que escreve a respeito da realização do ser humano através do trabalho poderia ser facilmente confundida com um influencer do LinkedIn nos dias de hoje:

"Uma criança livre da culpa da posse e do fardo da concorrência econômica crescerá com vontade de fazer o que for necessário fazer, e com a capacidade de alegrar-se em fazê-lo. É o trabalho inútil que entristece o coração. O deleite da mãe que amamenta, do estudioso, do caçador bem-sucedido, do bom cozinheiro, do criador talentoso, de qualquer um que faça o seu trabalho e o faça bem - essa alegria duradoura talvez seja a fonte mais profunda de afeto humano e da sociabilidade como um todo"(P.244)

Com exceção da primeira parte dessa citação, todo o resto é dito e repetido todos os dias pelos chefes, ideólogos do sistema dominante e times de "engajamento" das empresas modernas, numa tentativa de ganhar os corações e mentes dos trabalhadores para a ideia de que é possível uma realização pessoal completa através do trabalho. Ora, é possível isso hoje ? É possível uma realização completa se trabalhamos em empresas cujo eixo central (por mais que tenham a assim chamada "Agenda ESG") continua sendo a produção de lucro ? Em que, ao invés de um planejamento que vise ao bem-estar social, produzimos cada vez mais , esgotando o nosso meio ambiente e produzindo fome , enquanto há comida o suficiente para alimentar vários planetas Terra ?

Ainda sobre o meio ambiente, a autora faz uma observação bastante sagaz. Escrito em 1974, o movimento ambientalista estava apenas surgindo. Porém, nesse universo, o planeta Terra existia e a sua embaixadora dizia, a respeito do destino desse mesmíssimo planeta:

"Meu mundo, minha terra é uma ruína. Um planeta devastado pela espécie humana. Nós nos multiplicamos, nos empanturramos e brigamos até não sobrar nada, e então morremos. Não controlamos nosso apetite nem nossa violência; não nos adaptamos, nos destruímos. Mas destruímos nosso planeta primeiro. Não sobrou nenhuma floresta na Terra. O ar é cinza, o céu é cinza, está sempre quente. É habitável, ainda é habitável, mas não como este planeta. Este é um mundo vivo, uma harmonia. O meu é dissonância. Vocês, odonianos , escolheram um deserto; nós, terranos, criamos um deserto. Nós sobrevivemos lá, como vocês sobrevivem. As pessoas são resistentes ! Somos quase meio bilhão agora. Já fomos 9 bilhões. Ainda se pode ver as antigas cidades por toda parte. Os ossos e tijolos viraram pó, mas os pedacinhos de plástico, jamais…" (p.340)

O ponto que mais me surpreendeu nesse livro foi o quanto os personagens são revolucionários. E revolucionários no sentido de questionar sempre, radicalmente, se o mundo em que vivem atualmente faz sentido. E isso vale para qualquer sistema social: capitalista, "socialista" ou "anarquista". Inclusive, sobre o "socialismo real", cabe uma citação em que concordamos integralmente com a personagem Shevek:

"- Mas vocês são hierarquistas. O Estado de Thu é ainda mais centralizado que o Estado de A-lo. Uma única estrutura de poder controla tudo: governo, administração, polícia, exército, educação, leis, comércio, manufaturas. E vocês têm a economia baseada em moeda.
-Uma economia baseada no princípio de que cada trabalhador é pago pelo que merece, pelo valor do seu trabalho… Não por capitalistas a quem ele é obrigado a servir, mas pelo Estado, do qual ele é membro!
- É o trabalhador que estabelece o valor de seu próprio trabalho?
- Por que não vai a Thu para ver como funciona o socialismo real?
- Eu sei como funciona o socialismo real - respondeu Shevek. - Eu poderia falar sobre isso com vocês, mas o seu governo me deixaria explicar, em Thu ?" (P. 138)

Mesmo na sociedade "anarquista" , a inércia social, o comodismo e a rotina podam talentos brilhantes, como o próprio físico Shevek - que vai pra Urras justamente para desenvolver a sua própria pesquisa - e o seu amigo de infância Dab, que diz:

"Mas você falou em sofrimento físico, de um homem morrendo, com queimaduras. Eu falo de sofrimento espiritual ! De pessoas vendo seu talento, seu trabalho, suas vidas sendo desperdiçadas. De mentes inteligentes se submetendo a mentes burras. De força e coragem sendo estranguladas pela inveja , pela cobiça por poder, pelo medo da mudança. Mudança é liberdade, mudança é vida… Existe alguma coisa mais básica ao pensamento odoniano do que isso ? Mas não existe mais mudança! Nossa sociedade está doente. Você sabe disso. Você está sofrendo dessa doença. Dessa doença suicida !" (P.166)

A leveza com que a autora narra episódios que parecem extremamente corriqueiros para nós é extremamente bela. Você consegue imaginar do que se trata a descrição a seguir ?

"Shevek despertou com os sinos da torre da capela repicando a Primeira Harmonia para o serviço religioso de manhã. Cada nota era como uma pancada na cabeça. Estava tão enjoado e trêmulo que por um bom tempo não conseguiu sentar na cama. Pôde finalmente se arrastar até o banheiro e tomar um longo banho frio, que aliviou a dor de cabeça; mas o corpo todo continuava a lhe parecer estranho - a lhe parecer, de algum modo, repulsivo. Quando começou a ser capaz de pensar de novo, fragmentos e momentos da noite anterior vieram-lhe à mente, vívidos, cenas breves e absurdas da festa na casa de Vea. Tentou não pensar nelas, e não conseguiu pensar em mais nada. Tudo, tudo se tornou repulsivo. Sentou-se à escrivaninha e ficou sentado Aki por meia hora, com os olhos fixos, imóvel, totalmente desolado."(P.267)

Pois bem: trata-se da boa e velha ressaca. No planeta de Anarres o consumo de álcool era praticamente inexistente e, quando Shevek bebe pela primeira vez (cabe dizer: tentando fugir da realidade opressiva em que se encontrava, no momento, no planeta de Urras), ele experimenta esse terrível efeito colateral que muitos de nós conhecemos.

Hoje, mais do que nunca , vivemos uma "Era dos Extremos", como diria Eric Hobsbawm. Por um lado, a ultra-direita, que quer manter o mundo mais cinza, mais hipócrita, menos livre e mais desigual. E, hoje em dia, quer isso de maneira muito mais violenta do que há dez anos. De outro, dentre os que querem mudar, há alguns que param no meio do caminho revolucionário: acham que é possível mudar o sistema por dentro , sem mudar as regras do jogo. Por outro, ainda, há os saudosos do que foi a ditadura soviética, que se apropriou de um movimento revolucionário legítimo e o transformou no seu oposto, na Era Stalin. Nós achamos que a obra de Ursula bate em todas essas falsas alternativas. É profundamente revolucionária, profundamente anti-dogmática e, o que é mais importante, profundamente humana.

A obra de Ursula não é apenas mais uma obra de ficção científica. Em primeiro lugar, porque foi uma das primeiras mulheres a fazer sucesso no setor. Em segundo lugar, porque é uma obra que fala do futuro, não do passado, como muitos sucessos de venda baseados no mundo medieval. E, em terceiro lugar, porque fala de um futuro construído e protagonizado por toda a sociedade humana, não apenas por cientistas super-dotados, como acontece em muitas outras obras (como do próprio Asimov!). Encerro essa resenha com um discurso do cientista Shevek, em uma manifestação protagonizada por vários desses "invisíveis" que, do passado , reivindicam o futuro:

"É o nosso sofrimento que nos une. Não é o amor. O amor não obedece à mente e transforma-se em ódio, quando forçado. O laço que nos une vai além da escolha. Somos irmãos. Somos irmãos naquilo que compartilhamos. Na dor, que cada um de nós deve sofrer sozinho, na fome, na pobreza, na esperança, sabemos que somos irmãos. Sabemos, pois tivemos de aprender. Sabemos que não há ajuda para nós exceto a ajuda mútua, que nenhuma mão vai nos salvar se não estendermos a nossa mão. E a mão que vocês estendem está vazia. Vocês não têm nada. Não possuem nada. Não são donos de nada. Vocês são livres. Tudo o que vocês têm é aquilo que vocês são, e aquilo que dão."(P.294)
Sharon 23/07/2023minha estante
Também gostei muito do livro. Estou digerindo ainda. É enorme em ideias, não é? Alguns trechos tocaram fundo no meu coração, outros me deram palavras para explicar minhas próprias percepções.




giovana 07/06/2021

novo preferido
é sério. esse livro é perfeito!!!!! sinceramente, a discussão política e social que esse livro traz é infinitamente mais profunda do que 1984 do orwell. e antes de me xingarem: sim, eu ja li 1984. primeiro que ?os despossuídos? é muito um produto da guerra fria; mas, ao invés de trabalhar com a óbvia dualidade da época, a ursula trabalha com as ideias. esse livro é lindo. a sociedade que ela cria em anarres é linda. e ela sabe do que ela ta falando (leiam a crônica ?the ones who walk away from omelas? dela, disponível em pdfs por ai). gosto como ela lindamente desbanca o argumento da natureza humana nessa história de ficção-científica. gosto como ela traz teorias científicas e intercala na história com os argumentos sociais de uma forma muito inteligente e empolgante. o livro todo é lindo, não tem outra palavra. eu nunca marquei tantas páginas porque achei as coisas escritas sensacionais quanto nesse livro (talvez em ?ensaio sobre a cegueira? eu tenha feito isso também, que eu considerava meu favorito até ler esse). a ursula escreve rápido, mas às vezes ela para e se da o tempo de descrever as planícies de anarres, as florestas de urras, mas tudo pra tu entender as ideias por trás de tudo. a narrativa do livro no fim é sobre como as ideias são invencíveis (mas explorada de um jeito muito mais profundo do que no filme de ?v de vingança?. sobre o quadrinho não posso opinar pois não li). e ela escreve pra tu entender as ideias por trás do que ela ta entendendo e analisar. entender que não há natureza humana e sim o que a gente faz da nossa sociedade. é sério. esse livro é incrível. sem um defeito. tão atual na época que foi lançado quanto agora. eu diria mais necessário até agora. socorro eu falei demais mas é que é tão tão tão bom!!!!!!
Mariana 09/06/2021minha estante
Também achei isso em relação a 1984 !!!! A discussão de 1984 é praticamente toda em 40 páginas, e isso so acontece dps da página 200... Eu achei a escrita dela beeem lenta mas mesmo assim foi muito mais relevante q 1984 pra mim




Nath @biscoito.esperto 28/11/2018

Segurança ou liberdade?
Se você leu o primeiro capítulo de Os Despossuídos, se sentiu um pouco confuso com a história e decidiu ler umas resenhas para ver se vale a pena continuar, eu te digo que vale. O primeiro capítulo desse livro pode parecer confuso, mas, a cada página lida, esse livro passa a fazer mais sentido e ganhar mais significado.

Le Guin é uma autora de várias camadas. Ao mesmo tempo em que este livro é uma obra de ficção científica com alienígenas e distopias/utopias, é principalmente uma analogia/sátira política. E, na minha opinião, a autora teceu uma trama política e econômica muito mais interessante do que alienígenas e naves espaciais.

O livro começa quando Shevek, um físico do planeta (na verdade, uma lua) Anarres, viaja para o planeta vizinho, Urras, para compartilhar sua fantástica pesquisa, que pode mudar a forma como a ciência enxerga a passagem e a percepção do tempo. Essa viagem do satélite natural ao planeta em questão, no entanto, é muito mais polêmica do que parece. No passado, todos os seres humanos viviam em Urras, até que uma rebelião anarquista começou. Depois de uma guerra, todos os “comunistas” literalmente se mudaram para a lua, Anarres. Quase nenhuma comunicação ocorreu entre esses planetas desde então, criando um clima de isolamento através dos séculos, algo que Shevek está prestes a quebrar com sua viagem. Mais polêmica que a viagem de Shevek, apenas a sua teoria: ele crê que o tempo está acontecendo todo ao mesmo tempo, simultaneamente.

O livro é contado em duas linhas do tempo. Os capítulos ímpares contam o presente, a história de Shevek indo a Urras para ensinar sobre sua visão científica do tempo. Os capítulos pares, por outro lado, contam sobre a vida de Shevek em Anarres, desde que ele era um jovem estudante até formar família e se tornar um cientista respeitado.

Os Despossuídos não é uma boa obra por ser um bom livro de ficção científica, com apetrechos tecnológicos ou mundos fantásticos. Esse livro é fenomenal porque apresenta uma crítica social baseada em dois mundos opostos economicamente, e a forma como esses sistemas se desenvolveram é um dos worldbuildings mais bem elaborados que eu já li.

Podemos dizer, a grosso modo, que Urras é uma sociedade capitalista, governada pelo dinheiro e pelo poder, enquanto Anarres é um modelo de comunismo anarquista, com recursos divididos igualmente entre todos, mas causando uma escassez mortal. O livro é narrado em terceira pessoa e se foca no ponto de vista de Shevek, que cresceu num planeta comunista, onde tudo é de todos, o poder é inexistente e os bens são do povo. Vê-lo inserido num mundo capitalista selvagem, quase igual ao nosso, é uma das coisas mais interessantes que eu já li.

Quando lemos sobre sociedades utópicas com base econômica comunista/socialista, é comum que pensemos que a ideia do autor é ingênua e idealista, e que tal sistema jamais funcionaria. No entanto, lendo sobre o sistema econômico e sócio-político de Anarres, criado por Ursula, é impossível não notar que esse é um mundo extremamente verossímil, que poderia existir na vida real, com todas as suas vantagens e defeitos – assim como o capitalismo. Ursula não cria uma sociedade de pessoas perfeitas e abnegadas, mas usa os humanos que conhecemos, que são egoístas e possessivos, de forma a construir um mundo onde essas qualidades psicológicas são combatidas em todas as camadas da sociedade, da mesma forma que o capitalismo combate a comodidade.

Mais do que uma mera apresentação de um mundo imaginário ou uma crítica política, o livro trata da questão da liberdade. Afinal, será que somos livres? Se não somos, alguém é livre? Se ninguém é livre, é possível ser livre, afinal?

Uma metáfora que desenvolvi durante a leitura, para decidir com que sistema eu mais simpatizava, foi pensar assim: será que eu prefiro ter a certeza de que sempre terei comida, segurança e abrigo, em troca de não poder escolher que comida comerei ou que trabalho terei; ou será que prefiro a perspectiva de poder passar fome, sofrer violência e viver nas ruas, mas poder escolher o que faço nos meus próprios termos? Se você prefere a primeira opção, você simpatiza com Anarres. Se escolheu a segunda, simpatiza com Urras. Mas nada é preto no branco dessa maneira, e Os Despossuídos analisa exaustivamente esse ponto de vista. Numa sociedade brasileira que grita “comunismo!” ao ver qualquer pessoa defendendo direitos humanos, esse livro pode ser um choque de realidade.

Como se não bastasse, este livro também lida com várias questões filosóficas, morais e científicas. A autora debate muito sobre a igualdade de gênero, a liberdade de expressão, a hierarquia de poder na sociedade humana e sobre como a percepção do tempo e do universo molda nossas ações. Mas esses assuntos surgem de forma natural no texto, criando um livro rico em conteúdo, além de ser uma obra muito divertida de se ler. Afinal de contas, ainda é um livro de ficção científica com alienígenas.

Recomendo demais!

Dou destaque para alguns trechos do livro que podem cativar o leitor indeciso: quando Shevek debate sobre igualdade de gênero (página 26), quando Shevek explica sua teoria numa festa em Urras (página 219) e o debate sobre a necessidade do sofrimento (página 68).


site: www.nathlambert.blogspot.com
Joviana 24/12/2019minha estante
Amei sua resenha!




Hugo Hilst 16/03/2024

Ótimo
Amei amei amei amei amei...
Não conhecia a história do livro, pensei que o Shevek faria uma revolução e, a partir da manifestação em Urras, o livro seria todo de guerra etc etc. Mas não, inclusive quase chorei no final; muito fofinho...
O livro consegue balancear muito bem as questões políticas e individuais. Tem alguns pedaços um tanto expositivos, mas não atrapalham muito.
A linguagem não é nem um pouco complicada, mas também não é pobre; principalmente na descrição da natureza a Le Guin escreve umas frases bonitinhas que descansam a mente entre toda a parte política e científica.
A alternância entre passado em futuro me incomodou um pouco no começo, mas é ótima porque, ao estabelecer dois pontos temporais, deixa a história muito mais fresca e também (e eu só percebi isso agora) reflete toda a questão da Física Temporal, a Simultaneidade e os outros conceitos da "ciência" do livro.
Tenho MUITO mais dificuldade em falar bem de coisas do que humilhar, mas recomendo o livro!
Doido pra ler "O Dia Antes da Revolução", conto "prólogo" de Os Despossuídos.
Romão 17/03/2024minha estante
Chocade, descobrindo por você que existe um prólogo AAAAA




Wania Cris 26/10/2020

Pensa numa escrita gostosa...
Em primeiro lugar consto que não sou digna de resenhar essa obra. Não sou digna de ler Ursula Le Guin. Mas que honra ter lido.

A autora já tinha me ganhado num simples prefácio de Piquenique na Estrada. Uma escrita cativante, carinhosa, afável de se ler. E a impressão persistiu em Os Despossuídos.

O livro narra a saga de Shevek em busca da reconciliação de planetas gêmeos separados por uma revolução. O cientista acredita que falta apenas uma boa vontade em ouvir e acolher, mas, é levado a perceber que as causas da ruptura estão mais profundas do que ele imaginava. Passa pela sede de poder e dominação, pela negação da necessidade do outro, pela intransigência com o novo, com o diferente. E, dentro de tudo isso, essa escrita maravilhosa que mais parece um abraço, as ponderações sociais, o paralelo entre nações em guerra e interesses em jogo, uma aula de política com o embate entre socialismo, capitalismo e egoísmos... uma fada da escrita ela, gente...

Os saltos temporais entre presente, passado e futuro dificultam a assimilação da estória, mas, não o entendimento da obra. Se não entendi algo a falha é minha e só minha. Ursula nunca errou. Passo pano meeeeeeeeesmo!

Infelizmente a editora não tem interessem em traduzir e publicar os demais livros da série, o que é uma pena. Ursula deveria ser leitura obrigatória em todos os mundos.
NancYamada 26/10/2020minha estante
Ri muito de tanto pano passado kkkkk
Você eh a melhor!




Lorena.Lorraine 11/08/2020

Ah, eu gostei bastante desse livro!
Eu li ele devagarzinho porque ele me fez refletir bastante, tem muitas questões filosóficas, políticas e de física (confesso que em física eu boiava um pouco, mas não atrapalhou). Eu marquei diversas passagens, foi uma leitura muito enriquecedora, daquelas que vou refletir por um bom tempo!

Shevek, que é o personagem principal, é do planeta Anarres e está em uma ?missão? ao seu planeta gêmeo, Urras, que é também sua lua.
O livro se passa em duas linhas do tempo, alternadas entre os capítulos, uma em Urras e outra em Anarres.
A história explora as diferenças dos sistemas políticos, econômicos e sociais opostos dos dois planetas, trazendo reflexões de temas importantes da sociedade.
Além disso, as descrições de personagens e cenários são muito boas, eu pude imaginar coisas lindas durante a leitura, achei todos os estímulos muito gostosos.

Recomendo! :)
Jeferson 11/08/2020minha estante
Não conhecia esse livro, parece bem interessante. Vou adicionar na minha lista de leituras futuras, vlw pela dica =)




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