Erich 04/05/2024
Genial. Ursula aproveita a ficção científica para fazer crítica social presente. Este não é simplesmente um livro de ficção, é um livro de política, de filosofia. Ele exala mais realismo do que livros de não-ficção. E se conecta mais com a realidade presente do que livros que não exploram o futurismo.
O cenário é o seguinte: Anarres e Urras são planetas irmãos. Em Anarres temos uma sociedade de anarquistas. Em Urras temos tanto países capitalistas quanto países socialistas. O personagem que acompanhamos é Shevek, o físico, e vamos acompanhando ao longo da história:
- O desenvolvimento da teoria científica de Shevek. Que por si já valeria como ficção científica maravilhosa. Temos aqui uma mistura de entendimentos sobre o que é o tempo, referências a Albert Einstein, indícios da criação de dispositivos que poderão levar a uma federação interplanetária, ...
- A exploração de como funcionaria uma sociedade anarquista. Somos levados a refletir sobre diversos aspectos, inclusive sobre nossa linguagem. O livro, além disto, não para em um simples elogio ao anarquismo. A história expõe problemas que poderiam surgir nesta sociedade e desenvolve uma crítica a respeito. Toda essa construção da um ar filosófico ao texto.
- O choque cultural de um anarquista conhecendo uma sociedade capitalista. E aqui temos diversas críticas explicitas à sociedade capitalista atual. Somos levados a uma perspectiva nova e obrigados a perceber que várias coisas não são "dadas", não são "normais". E aqui o livro toma um ar essencialmente político.
Gostei também do modo de escrita da Ursula. Primeiro, pois sua fala é direta. Ela diz imediatamente aquilo que deseja, cada frase uma nova reflexão. Segundo, a distribuição dos capítulos. Vamos fazendo uma alternância constante passado-futuro, Anarres-Urras. E essa construção é feita de tal modo que a leitura do futuro auxilia o entendimento do que ocorreu no passado. As ideias se conectam, os discursos se conectam.
Coloco abaixo várias citações do livro que me chamaram atenção ao longo da leitura. Muitas críticas ao machismo na sociedade, críticas ao capitalismo, reflexões sobre anarquismo e revolução.
" - Não há mesmo nenhum distinção entre o trabalho do homem e o trabalho da mulher?
- Bem, não, isso parece uma base muito mecânica para a divisão do trabalho, não é? Uma pessoa escolhe o trabalho de acordo com seu interesse, seu talento, sua força... O que o sexo tem a ver com isso?"
" Se para sentir-se digno Kimoe [um homem urrasti] precisava considerar metade da raça humana inferior a ele [refere-se às mulheres], como as mulheres faziam para se sentir dignas? Será que consideravam os homens inferiores? E como tudo isso afetava a vida sexual deles?"
" - Se há uma coisa que todo mundo sabe sobre os odonianos, suponho, é que vocês não bebem álcool. Aliás, isso é verdade?
- Algumas pessoas destilam álcool de raiz de holum fermentada para beber. Dizem que libera o inconsciente, como no treinamento das ondas cerebrais. A maioria prefere o treinamento. É muito fácil e não causa a doença. Isso é comum aqui?
- Beber, sim. Não sei essa doença. Como se chama?
- Alcoolismo, eu acho.
- Ah, sei..."
" - Eles esperam que os estudantes não sejam anarquistas? - perguntou. - O que mais os jovens podem ser? Quando se está embaixo, deve-se organizar as coisas de baixo para cima!"
" Sua sociedade os mantinha completamente livres de carências, distrações e preocupações. O que estavam livres para fazer, entretanto, era outra questão. Parecia a Shevek que a liberdade de obrigações era exatamente proporcional à sua falta de liberdade de iniciativa."
" Tentou ler um texto elementar sobre economia, mas a leitura o entediou além do suportável; era como ouvir a narração interminável de um sonho longo e idiota. Não conseguia se forçar a entender como os bancos funcionavam e por aí afora, pois todas as operações do capitalismo eram-lhe tão sem sentido quanto os ritos de uma religião primitiva, tão bárbara, tão elaborada e tão desnecessária"
" Tinha três quilômetros de extensão e era uma massa sólida de pessoas, tráfego e coisas; coisas para comprar, coisas à venda. [...] Tudo inútil, para começo de conversa, ou enfeitado para disfarçar sua utilidade; quilômetros de luxo, quilômetros de excremento."
" Não podem comprar a Revolução, não podem fazer a Revolução. Vocês só podem ser a Revolução. Ela está no seu espírito, ou não está em lugar nenhum."
" Era fácil partilhar quando se tinha o suficiente, mesmo que escassamente suficiente, para se viver. Mas e quando não havia o suficiente?"