Alê Ferreira 11/03/2022
A mulher de pés descalços
Um lugar onde os quintais são o reduto das mulheres e nenhum homem tem nada o que fazer ali, onde as mulheres não voltam para suas casas sem parar na casa de cada mulher de sua vizinhança e ter com ela uma conversa, as vezes tão longa que precisam fazer o caminho juntas e indo e voltando até que seus segredos sejam compartilhados.
O relato de Mukasonga sobre os costumes, as crenças, a cultura de sua família e de seu povo tão diversa da nossa, nos transporta à Ruanda, e ao mesmo passo que causa estranhamento nós causa também comoção e encanto.
Esse livro é tão lindo porque é carregado de afeto e de lembranças ternas.
E se, despida da concepção ocidental de mundo, faz-se essa leitura, não há como não ficar encantada com a narrativa.
Tem seus trechos chocantes, porque olho daqui do meu lugar, a partir da minha cultura.
Mas o que mais choca nesse livro é olhar para os rasgos feitos pelo efeito colonizador. Do meio da terra de Ruanda, abre-se um grande filete se sangue. E os tutsis sangraram, foram exilados e foram violados (ou seria mais adequado dizer violadas ).
Assassinatos, expropriação, estupros, apropriação indevida de sua terra e massacra de um povo pelo apagamento se sua cultura, suas crenças religiosas ...
Mas a autora é tão maravilhosa que isso não salta nas nossos olhos na leitura. Isso é algo que ela vai segredando ao nosso coração cuidadosamente ao longo da narrativa. E me fez chorar.
Pode ler sem medo, livro é lindo, todo ele é cheio de afeto, de imagens da natureza, memórias afetivas familiares e culturais, mas tem sempre um filete de sangue escorrendo, e o final uma crítica tão, tão bem escrita que vem numa imagem de um sonho (pesadelo). Uma crítica cortante ao extermínio provocado pelo colonialismo e a violência mascarada imposta pela igreja católica.