spoiler visualizarCami Leite 22/06/2012
Literatura de ficção, subjetividade contemporânea e discursos psicológicos: análise do livro “Recordações do escrivão Isaías Caminha”.
O romance de Lima Barreto, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, é uma obra autobiográfica que coloca em pauta os dramas individuais do personagem-narrador, sobretudo seus ressentimentos para com uma sociedade preconceituosa que acabou por limitar seus sonhos e objetivos, inferiorizando-o por ser mulato. Esta obra foi publicada durante o século XX, período este caracterizado pela tradução das experiências individuais sob uma ordem capitalista, resultado da passagem da “subjetividade ilustrada” para a “subjetividade romantizada”.
Podemos enxergar no enredo de Lima Barreto a predominância da experiência individual subjetiva do narrador-protagonista e a focalização dos aspectos espirituais e psicológicos da história em si. O fato do enredo desta obra passar-se quase que em sua maioria em uma redação de um jornal impresso, não contar a história de um personagem excepcional e sim de um personagem comum, e narrar as vivências e conflitos desse mesmo personagem, são recursos que favorecem os processos de identificação do leitor em relação a esta nova forma de fazer literatura decorrente dessa romantização da subjetividade, recursos estes que tornam possível a aproximação do leitor com o personagem literário.
Lima Barreto faz registro dos conflitos sociais e pessoais de maneira simples e sincera, tomando o leitor como cúmplice de seus sentimentos em relação às injustiças e aos seus anseios por conquistar um mundo melhor. Essa intimidade literária também pode ser percebida na escolha da comunicação expressiva “autor-obra-leitor”, ou seja, na criação de uma atmosfera que aproxima o leitor tanto da obra (quando se refere ao protagonista, um herói comum), quanto do próprio autor (que transcreve comentários pessoais ao decorrer do enredo), aproximando também o campo literário do campo psicológico.
Isaías Caminha torna-se ao decorrer da história uma espécie de álter-ego tanto do autor quando do próprio leitor que passa a se colocar no lugar do personagem vivenciando as variadas situações presentes na ficção, e que se tratando desta obra, representam situações reais. É fácil identificar-se com o personagem narrador-protagonista, por se tratar inicialmente de um jovem recém “amadurecido”, filho de pais humildes, dotado de uma inteligência nata (seu “objeto” de orgulho), que vê na cidade grande uma oportunidade de realizar o sonho de tornar-se doutor, e que ao decorrer da trama vê este mesmo sonho ser deixado de lado, consequentemente esquecido, dando lugar ao comodismo devido às suas desventuras e do instinto de sobrevivência dentro de uma sociedade preconceituosa e discriminatória. O leitor se vê capaz de incorporar o personagem, viver suas emoções, frustrações, conquistas e torcer por um provável “final feliz”, tornando o personagem fictício um objeto real e visualizável, mesmo que hipoteticamente.
Comparando este romance de Lima Barreto com o romance “Crime e castigo” do escritor russo Fiodor Dostoievski, é possível relacionar ambos os protagonistas em seus anseios, porém os diferem em personalidade. Esta obra conta a história de um atormentado protagonista sem berço, que vive na miséria e opressão com a mãe e a irmã, e que vislumbra que seus males são decorrentes de uma divida com uma senhora, acreditando que a morte da mesma traria consigo o fim dos seus problemas. Enquanto que Raskólhnikov, o protagonista da trama de Dostoievski, tenta justificar seus pensamentos e atos criminosos alegando que ele era superior moral e intelectualmente, e que as vias de fato, seria em prol de um bem maior, Isaías Caminha era completamente avesso a este tipo de atitude, e mesmo se julgando superior intelectualmente a muitos, queria apenas ser reconhecido pelos seus devidos méritos. A semelhança das narrativas encontra-se na centralização de todo o enredo nos conflitos interiores de ambos os personagens protagonistas, e na maneira como dois autores completamente distintos tornam-se íntimos dos seus leitores ao aproximá-los de seus personagens tornando-os verdadeiros heróis.
Concluindo a análise literário-psicológica da trama de Lima Barreto, Isaías Caminha narrou suas memórias carregadas de frustrações e consciente de estar vivendo em uma situação falsa, cômoda e/ou de exceção, mas convicto de ter vencido e superado, mesmo que em partes, as humilhações que sofrera no início da sua jornada e do pré-julgamento e discriminação que enfrentara condicionado à sua etnia.
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Resenha apresentada à disciplina de "Epistemologia e História da Psicologia", do curso de Bacharel em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso - campus universitário de Rondonópolis.