spoiler visualizar.Igor 14/04/2024
Tentarei começar esse pequeno texto sobre "A menina que roubava livros" de uma forma mais tradicional, pra variar um pouco.
Seu enredo, com um leve spoiler, é o seguinte: ao perceber que a pequena Liesel Meminger, uma ladra de livros, lhe escapa, a Morte afeiçoa-se à menina e rastreia suas pegadas de 1939 a 1943. A mãe comunista, perseguida pelo Nazismo, envia Liesel e o irmão para o subúrbio pobre de uma cidade alemã, onde um casal se dispõe a adotá-los por dinheiro. O garoto morre no trajeto e é enterrado por um coveiro que deixa cair um livro na neve. É o primeiro de uma série que a menina vai surrupiar ao longo dos anos.
O único vínculo com a família é esta obra, que ela ainda não sabe ler. Assombrada por pesadelos, ela compensa o medo e a solidão das noites com a conivência do pai adotivo, um pintor de paredes que lhe dá lições de leitura. Alfabetizada sob vistas grossas da madrasta, Liesel canaliza urgências para a literatura. E em meio a livros roubados e à uma vida às sombras da Segunda Guerra Mundial, vamos acompanhando a trajetória de Liesel na Rua Himmel.
Vai ser difícil falar sobre esse livro, mas vamos lá. Ao situar a história durante a ascensão do Nazismo ao poder e entregar à Morte o papel de narradora, Markus Zusak deixa claro que essa história é trágica. Ele poderia facilmente ter enveredado pelo caminho da ficção histórica militarista, com personagens heroicos e grandes batalhas, mas a história da Liesel é tudo menos isso. É nos mostrado um lado raramente lembrado daquela época: durante o período que vai de 1937 a 1943, cerca de 90% da população alemã apoiava o Nazismo; nós passamos a conhecer algumas pessoas que fazem parte dos outros 10%. E a vida para essas pessoas não é fácil.
Nos primeiros anos do Terceiro Reich, era dito às pessoas que deveriam queimar tudo o que representava o período diretamente posterior à Primeira Guerra; livros, quadros, qualquer coisa que lembrasse "o período vergonhoso" da história alemã. Como resultado disso, enormes piras foram feitas nas cidades, despertando todo tipo de reação das pessoas: as de apoio e júbilo eram mais que incentivadas, enquanto qualquer opinião contrária era severamente punida, às vezes com viagens só de ida para os campos de concentração.
Quando as crianças atingiam os 10 anos de idade, eram obrigatoriamente entregues para Juventude Hitlerista, uma instituição que visava treinar esses jovens para os interesses do partido. Alemães que não fossem filiados ao Partido Nazista eram tratados pouco melhor que judeus e comunistas, vistos sempre com desconfiança e raramente conseguiam emprego em algum lugar. E isso tudo antes da guerra propriamente dita começar. A partir desse momento, a população, especialmente aqueles 10%, fica presa entre dois lados de um torno: a sombra aterradora e sempre presente do Führer e os cada vez mais comuns ataques dos inimigos da Alemanha.
Foi uma época horrível, e a Morte, nossa fiel narradora, não nos deixa esquecer as atrocidades que foram cometidas naqueles anos. Mas não se deixem assustar por isso. Ela é bem delicada e gentil, sempre cuidando das almas daqueles que ela tem que levar, e talvez seja uma das narradoras mais incríveis que já conheci.
É por ela que conhecemos a vida de Liesel, essa garota que escapou do alcance da sua narradora tantas vezes que ganhou sua admiração mais sincera. Essa jovem é incrivelmente bem construída como personagem, mas nunca em detrimento daqueles ao seu redor. Seu pai adotivo, Hans Hubermann, é definitivamente a melhor pessoa que já cruzou o olhar desse leitor que vos fala, e ser uma pessoa boa sempre traz seus problemas, especialmente naqueles anos tão conturbados; ele não é só o pai de Liesel, mas seu amigo e companheiro, sem sombra de dúvida a pessoa mais importante na vida daquela mocinha e ela tem a mesma importância para ele. Sua esposa, a sra. Rosa Hubermann é rígida e bem desbocada mas, do seu próprio jeito truculento, ama a família com todas as forças e é uma das personagens mais fascinantes do livro. Há muitos outros personagens, e um deles, em especial, tem uma importância gigantesca na vida da família Hubermann, mas não falarei dele aqui.
Existe uma alegoria artístico-literária, registrada pela primeira vez no fim da Idade Média, por volta de 1424, chamada "danse macabre", a dança da morte. Apesar do nome fortuito, ela simboliza a democracia da Morte: ela não se importa com classes sociais ou credos religiosos de qualquer tipo, trata a todos da mesma forma e leva-os no fim. Lembrava a todos da fragilidade e efemeridade da vida. Esse livro me lembra muito essa danse, mas ele consegue acrescentar algo importante: a celebração e importância da vida, especialmente nos tempos mais difíceis.
A chegada de Liesel Meminger à casa dos seus pais adotivos Hans e Rosa Hubermann na rua Himmel é o ponto de partida para algo que simplesmente não tenho palavras descrever adequadamente, exceto dizer que é uma história belíssima. Então antes que o risco de estragar de alguma forma esse livro com essas palavras capengas aumente mais ainda, encerrarei esse texto por aqui. Aos que ainda não leram, procurem "A Menina que Roubava Livros" e o leiam, tenho certeza que, apesar de emergirem ao final da sua jornada emocionalmente instáveis e provavelmente arrasados, irão gostar muito desse livro!