Queria Estar Lendo 30/03/2018
Resenha: Coragem
Coragem é a autobiografia da atriz e ativista Rose McGowan, publicado aqui pela Editora Harper Collins - que cedeu o exemplar para resenha. Uma obra visceral, do início ao fim, e definitivamente um texto que deveria ser lido por todo mundo.
Para quem não sabe, eu sou escritora. Como escritora, palavras são minha ferramenta, minha maneira de conversar com os leitores, de mostrar sentimentos, de criar mundos e de dar vozes à personagens. E, pela primeira vez em muito tempo, eu terminei um livro sem saber como me expressar. Palavras me faltaram; o que sobrou foi emoção.
"A sociedade dá passe livre aos homens. "Eles não se controlam". "Você os levou a fazer isso com sua beleza". Ouvi isso muitas vezes. "Eles não conseguem se conter. Ah, coitado, ele não aguenta." Ah, vá se foder, isso se chama agressão. Ninguém diz o que é de fato nessa sociedade, mas está na hora de começar."
Coragem não é uma leitura fácil e acho que por isso ela se tornou tão essencial. É um livro cru, honesto e devastador; é a história de uma artista, de uma sobrevivente, de uma mulher.
Rose McGowan foi criada em uma seita. Em sua infância, ela já viveu coisas cruéis demais. Experienciou a loucura do fanatismo, os extremismos que as pessoas são capazes de fazer por se colocar em pedestais inalcançáveis. Rose viu e foi obrigada a viver sob a sombra da coisa tenebrosa que é um homem poderoso; livre disso, ela teve aquela ínfima sensação de que, talvez, na América, as coisas fossem diferentes. Não foram.
"Você pode dizer 'chega'. Você pode dizer 'sim' para ser mais livre. Você pode se libertar da armadilha que foi armada para você. E, acredite, ela foi armada sim."
É interessante como ela criou comparações entre a seita religiosa na qual foi criada e aquela à qual foi apresentada ao pisar em Hollywood. Demorou um tempo para Rose começar a trabalhar como atriz - tempo esse em que mais do impensável e do cruel recaíram sobre ela, como o abandono por parte da família, com um pai perturbado e uma mãe submissa ao papel desempenhado durante tanto tempo no culto; a maneira terrível com que o mundo tratou as diferenças de Rose; mesmo um período como sem-teto, abandonada à própria sorte. Essa mulher experimentou tudo que o mundo tem de mais ruim, e é absurda a força que ela encontrou em si mesma para seguir em frente.
Não uma força inquebrável, definitivamente. Rose passou por maus bocados, enfrentou a depressão em suas diversas formas. Viu o pior do mundo refletido nela mesma.
"Em uma sociedade ditada pelo que vemos na TV, a verdade é que o que você tem assistido e consumido desde que nasceu formou quem você é e continua formando."
Em Hollywood, no entanto, nasceu o culto igualmente perturbador àquele ao qual ela foi forçada a conviver durante sua infância. Em frente e atrás das câmeras, Rose foi exposta ao pior do ser humano. O culto ao corpo, à imagem, aos sorrisos falsificados para esconder as monstruosidades que se escondem atrás de portas de hotéis e reuniões com a pretensão de dar um salto em sua carreira. Hollywood é um reflexo do patriarcado, do machismo e de tudo de ruim que pode acontecer a uma mulher. É um espelho do nosso mundo.
Os relatos da artista são de revirar o estômago; você não precisa de muita bagagem para entender a quem ela se refere quanto aos abusos - tanto físicos quanto psicológicos - e não precisa nomear para que os rostos dos monstros relatados nas campanhas criadas pelas atrizes hollywoodianas surjam em sua mente.
"Por que o desejo de um homem toma meu direito à igualdade? O que faz com que certos homens pensem que suas perversões são mais importantes do que o direito que uma mulher tem de existir como ser humano livre na sociedade?"
Rose expõe tudo o que viveu. É visceral porque é real; porque aconteceu com ela e provavelmente aconteceu com dezenas, talvez centenas de outras atrizes. É cruel porque a maneira com que elas foram caladas é compreensível - o medo as calou. O medo da repressão, de serem vistas como mentirosas, as coisas imbecis que lemos em comentários sempre que um novo caso de assédio é denunciado.
"Quando somos doutrinadas desde cedo, quando nos moldam dessa maneira, não aprendemos a ver nosso valor. Não percebemos que nós, durante todo o tempo, merecemos o ouro; ouvimos o tempo todo que devemos nos contentar com a prata."
"Mas ela podia ter falado antes". "Por que não fez nada para impedir?". "Podia ter pedido ajuda". "Podia ter gritado.". "Ela aceitou isso quando quis se envolver com a fama". É doentio, mas é real. É o que acontece ainda hoje em dia - e os relatos da Rose vêm de anos atrás; tempos em que a voz das artistas, das mulheres, eram ainda mais ínfimas contra a opressão sofrida.
O medo oprime as pessoas de maneiras diferentes. Com Rose, seus traumas se relevaram de diversas maneiras; subjugaram a atriz até a pior situação em que uma mulher poderia se encontrar. Não só a calaram como também bagunçaram tudo que ela era. Rose fala sobre os relacionamentos abusivos que viveu - com homens desconhecidos e com grandes nomes da indústria do entretenimento - e como ele as cegou para o que era abuso. Como gentileza não apaga a crueldade de um homem; como as mulheres são aterrorizadas sem mesmo saber que estão sendo vítimas de um relacionamento tóxico.
"As mulheres sabem quando foram agredidas emocional, física ou verbalmente. E nenhum homem tem o direito de dizer o contrário."
O livro é uma montanha-russa e seu ápice é o momento em que Rose resolveu chutar a porta. Depois de permanecer nas sombras por tanto tempo, ela ergueu sua voz. Fez-se ouvir. Ela ergueu o rosto e sua presença e falou; contou sobre os abusos, sobre os terrores que a perseguiram. Mostrou os monstros e seus rostos, expôs ao mundo que seus ídolos eram os pesadelos de muitas mulheres. Ela falou e foi ouvida. Devagar, mas ganhando espaço para lutar contra o sistema opressor que por tanto tempo governou Hollywood.
"Não ousem ensinar às meninas a serem complacentes; ensinem os meninos a não estuprar. Para mim, o estupro não pode ser definido por uma lei escrita por um homem. Como esse homem pode saber o que é estupro? O estupro, para mim, é qualquer violação do meu corpo."
E é um reflexo do mundo, convenhamos. Como ela mesma diz, o que nós vemos na TV é o que nos condiciona para a vida. Se vemos a representação do poder do homem branco em filmes e séries, é porque é o que comanda o mundo - não mais.
"Mas o estupro como recurso de enredo precisa acabar. Para começo de conversa é preguiça de desenvolver a história; há muitas maneiras de fortalecer uma personagem para incentivá-la a agir."
Hoje em dia pedimos representação; pedimos justiça; pedimos que sejamos ouvidas. E, devagar, o mundo está respondendo a isso. Não completamente; o Oscar ainda premiou um agressor de mulheres como Melhor Ator. Uma franquia bilionária ainda contrata um agressor de mulheres para um de seus papéis principais.
"Não somos descartáveis, não somos "só garotas". As mulheres de Juarez, as índias desaparecidas do Canadá, as "meninas noivas" sequestradas por Boko Haram na Nigéria, todas são "só garotas". Está na hora de pararem de pensar em nós dessa forma. Não somos só "qualquer coisa". Somos seres humanos completos. Pensem na nossa vida."
Mas, em meio a algumas sombras, encontramos luz; há espaço para um filme de heroína ser um dos mais elogiados de todos os tempos, há espaço para um filme comandado por um elenco majoritariamente negro alcançar a maior bilheteria da história dos Estados Unidos. Há espaço para a voz daqueles que foram oprimidos por tanto tempo, e Rose é uma das que está lutando dia após dia por isso.
Porque Rose McGowan é Coragem e dá sua voz para alavancar a coragem das outras mulheres. Ela é uma representação poderosa do que é o feminismo. Ela expôs seus demônios para lutar contra eles. Mostrou seus terrores para que víssemos que não estamos sozinhas. Esse livro é essencial e deve ser lido e comentado por todas as pessoas. Deve ser espalhado entre aquelas que lutam e aquelas que precisam entender seu lugar nessa luta.
"Sejam criativas em tudo que fizerem. É preciso coragem, mas acredito em vocês; sei que têm o poder de serem melhores. Sei que está aí dentro a força para serem corajosas."
Coragem é uma obra prima; um livro inesquecível e uma história poderosa que vai ficar comigo para sempre.
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