spoiler visualizarMárcia 28/01/2023
Nas entrelinhas do caos
“Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Malbork, debruçando-se na borda da costa escarpada, sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa numa rede de linhas que se entrelaçam, numa rede de linhas que se entrecruzam no tapete de folhas iluminadas pela lua ao redor de uma cova vazia. ‘Que história espera seu fim lá embaixo?” (Calvino, I. 1999)
Um leitor, denominado “você”; uma leitora, Ludmila; um livro incompleto, foram esses os elementos-chave do romance de Calvino. Ele conversa diretamente conosco, prevê as nossas indagações, discute-as, justifica-se, faz reflexões sobre o nosso ponto de vista. Nós, leitores, somos tão previsíveis assim? Caí nas artimanhas do romance, peguei-me torcendo pelos personagens, furiosa pela frustração de descontinuidade do texto. E o que seria um bom texto, senão a epifania de desvendá-lo?
Calvino brinca com essa ideia, dá-nos, não só um, mas dez romances inacabados, em diferentes gêneros, para complicar mais a nossa interação. Nesse interim, faz intervalos com uma história por traz das “estórias”, a busca desenfreada do leitor, personagem do livro, pela continuidade dos romances.
Assim somos nós na vida, buscamos no inacabado, a linearidade, no descomeço um começo, no interrompido uma continuação, porém, "Renunciar às coisas é menos difícil que se pensa: basta começar. Uma vez que você consegue prescindir de algo que julgava essencial, percebe que pode dispensar também outras coisas e, mais tarde, tantas coisas mais." (Calvino, I. 1999)
Ao entendermos que o romance não atenderá nossas expectativas, somos levados, inconscientemente, a criar outros mecanismos para dar continuidade a leitura. Eis a tarefa mais difícil de um leitor, encontrar nas entrelinhas, mesmo essa sendo do seu próprio contexto pessoal de interação, um sentido coerente para não ficar perdido em meio aos caos, na verdade, “perder-se, nada mais é que achar-se em um outro nível de entendimento”. Seria isso possível também na leitura?
Ítalo Calvino nos mostra que sim, que aos autores literários são permitidos tanto criar, como “descriar” o universo, o fixo, o real e até o imaginário. Somos capazes de nos reinventar mesmo dentro de uma leitura, quiçá na vida e seus descaminhos... No final descobrimos que esse viajante numa noite de inverno, e todos os demais títulos dos capítulos, reunidos num mesmo plano, figuram-se como nós mesmos, procurando um final coerente para a nossa própria existência, a existência da continuidade, quando só são possíveis indagações.