Caio 13/02/2011
Uma elegia alentejana
Levantado do chão, como as searas e os homens com suas esperanças. Assim queria José Saramago seu romance, publicado pela primeira vez em 1979, por isso o fez telúrico, as raízes fincadas profundamente na terra. Mas não é de idílios pastoris que trata o livro, apresenta antes, rude e áspero, a faina dos trabalhadores rurais do Alentejo em suas desgovernadas andanças, toscos amores e doridas mortes numa galeria sem-fim de tipos. Esmagados e embrutecidos pelo latifúndio e suas engrenagens injustas, insensatas quase, párias entre párias, todos ossos e nervos prodigalizados na construção e sustento duma pátria, duma igreja e duma propriedade que incansavelmente pedem mais, como se não houvessem ainda e nunca obtido o suficiente. É essa a imagem, pintada em rico colorido, que carrega na retina quem consegue chegar ao fim das mais de 360 duras páginas de Levantado do Chão.
O romance trata por um lado da saga nada épica da malfada família de lavradores que carregam o ajustado sobrenome de Mau-Tempo, adequadíssimo a estes míseros a quem o tempo é sempre mau. Começando com Domingos, passando por João e Antônio e outros tantos Manuéis, Josés e Augustos, que não carregam o mesmo sobrenome, mas a quem não se pode negar o pertencimento a essa família, irmanados na mesma miséria, batizados com dor idêntica, mesmíssima fome. O antagonista, não se pode dele esquecer, da grande família Mau-Tempo, Lamberto, Norberto, Alberto ou Floriberto, pouco importa o afixo, o nome é sempre o mesmo, intercambiável entre esses vários prenomes, o antagonista chama-se Latifúndio. Desse milenaríssimo embate é que trata o livro, a massa trabalhadora contra a propriedade privada ou antes, para que a preposição não indique qualquer oposição consciente mas antes sentimento vago e impreciso, melhor seria dizer que o livro trata das relações entre a massa trabalhadora e a propriedade privada.
Mas falar de massa trabalhadora seria grave injustiça contra Saramago, que tanto se esforçou – e justamente a variação dos nomes dos lavradores indica isso – por mostrar a riqueza da vivência desses homens, e mulheres também, evidentemente, muito embora acerca delas não se tenha ainda dito palavra. Mesmo isso é deliberado, uma vez que o próprio aparecimento e o destaque dados às personagens em oportunos momentos indicam a estratégia narrativa da história. Trata-se de um desvelamento cujo avanço é demarcado cronologicamente quanto mais prossegue a história.
Tudo isso regado por fina ironia, um singular modelo de construção lingüística que pouco se dá em respeitar regras tradicionais de diálogo, travessão-ponto-parágrafo, e um léxico camponês consoante ao tema, que respeita sua linguagem, sonoridade e particularismos e mesmo erros, como forma mais adequada de expressão da trama. Acompanhado de um raro domínio do idioma, de constantes e deliberadas intervenções com o objetivo de mostrar ao leitor o caráter de constructo do texto, quase como beliscões na forma de diálogos conosco, quando íamos já entorpecidos pelo ritmo da narrativa. Essas marcas distintivas tornam o texto saramaguiano inconfundível para quem já o tenha lido ao menos uma vez com atenção e profundidade.
Esse é, por tudo isso e tantos outros motivos, definitivamente, um romance engajado. Mas não daquele engajamento insosso e ingênuo, que idealiza um trabalhador herói de músculos de aço e filósofo de dialéticas e vãs morais. É engajado por ser quase agressivo, um murro em nossa pacífica e complacente disposição de aceitar como imutável e quase celestial verdade um estado de coisas que nos é imposto – por alguém, não resta dúvida. Quais respostas daremos a essa agressão, Saramago jamais poderia determinar, mas provavelmente sabia em seu íntimo que, depois de ler Levantado do Chão, ninguém é igual a antes.