Matheus Monteiro 23/04/2021
Ode a narrativa
Em um dos vários contos e fábulas de The Starless Sea da escritora estadunidense Erin Morgenstern, há uma fábula sobre uma escultora de histórias. No começo, ela usava materiais efêmeros como fumaça, névoa, para contar suas histórias. Depois começou a usar materiais mais resistentes, areia, vidro, até que recebeu a tarefa de criar uma história-cofre. Feita de ferro, intrincada e com diversas histórias dentro de si, essa história-cofre guardaria no interior de sua estrutura um segredo.
Essa é uma ótima forma de entender a própria criação de Erin.
The Starless Sea é um livro de fantasia que narra a história de Zachary Ezra Rawlins (acredite, você vai aprender o nome dele bem direitinho), um rapaz que está na faculdade e que certo dia, na biblioteca do campus, encontra um livro que conta sua própria história. Intrigado, com aquele volume que descreve não apenas seu presente, como fatos do seu passado (como quando em sua infância, ele quase abriu uma porta desenhada na parede) e ações futuras, Zachary começa a tentar entender de onde aquele livro surgiu, o que o leva a uma jornada misteriosa envolvendo organizações secretas e ambientes fantásticos, incluindo o misterioso Mar Sem Estrelas.
A primeira coisa que precisa ser elogiada é a escrita de Erin. Extremamente visual, lúdica e quase onírica, a escolha de palavras da autora para descrever não apenas os ambientes de sua história, como os próprios fatos é de um encantamento e deslumbramento impressionantes. Erin se aproxima da linguagem vista em contos de fadas e dos mitos, com uma narração distanciada, contemplativa, quase em um estado meditativo ao mostrar seu universo fantástico. As partes onde ela descreve processos ritualísticos do seu universo é um dos momentos mais impressionantes da narrativa.
E que narrativa. Retornando ao primeiro parágrafo, é possível entender o livro como um grande cofre que guarda um segredo. Erin cria uma aura de mistério e desconhecido por grande parte da sua obra, sem quase nunca entregar respostas evidentes, e mesmo as entregando não permitindo que sejam objetivas, seja usando da metáfora ou da personificação de conceitos para criar mais de um sentido. A jornada de Zachary por respostas é isso. É uma grande jornada por respostas, que não ficam exatamente claras. É um caminhar à procura de sentido, em um universo de diversas histórias.
Assim como a escultora de seu conto, Erin cria uma estrutura repleta de outras histórias. Há contos, fábulas, extratos de diários, que intercalam com os capítulos da jornada de Zachary. Histórias que são explicação de universo, histórias pregressas de outros personagens, histórias que talvez não se conectem com a de Zachary diretamente. Um mosaico narrativo que traz não apenas a capacidade de criação da autora, como o tensionamento da própria ideia de narrativa que temos. Em determinado momento, é possível se questionar: Zachary é de fato o protagonista de The Starless Sea? Em um livro com tantos contos, personagens, momentos e eventos, o que valida a existência de Zachary como protagonista? Porque ele não pode ser apenas um outro conto a qual vemos mais detalhes? Se nos contos entre os capítulos, a linguagem simplifica eventos para uma experiência de tempo mais acelerada para a pessoa que lê, o que garante que Zachary não seja apenas um conto de fadas com mais tempo de duração? Ele inegavelmente é o protagonista de seu próprio conto de fadas, mas porque esse conto de fadas é o principal dentre tantos?
Erin tensiona essa questão de história múltipla, até mesmo entrando em aspectos metalinguísticos quando cria uma personagem pintora que influencia na narrativa de uma maneira holística (Erin além de escritora, é pintora e artista visual), até mesmo sugerindo que o livro pode ser sobre encontros. Buscas de pessoas desaparecidas, respostas, sentido.
“Eu acho que pessoas vêm para cá pela mesma razão que nós viemos.” Dorian diz. “Na procura de algo. Mesmo se nós não soubermos o que era. Algo a mais. Algo a se maravilhar. Algo a pertencer. Nós perambulamos através das histórias dos outros, procurando pela nossa.” - The Starless Sea, página 297. (tradução livre)
Uma coisa que foi impossível ignorar, e me fez caçar entrevistas da autora para saber se eu não estava imaginando coisas, é a atmosfera que lembra os trabalhos do escritor argentino Jorge Luís Borges (confirmei minha impressão numa entrevista a qual ela afirma que faz referência ao trabalho do escritor). Para quem não conhece, Jorge Luís Borges foi um escritor argentino que possuía trabalhos no âmbito do fantástico, mas que desafiava convenções e possuía fortes tons metafísicos e teóricos-especulativos, com sua narrativa indo em linguagens de teorização ou de mitologia. The Starless Sea ressoa muito a densidade e as especulações narrativas do escritor, que possui um conto que, por exemplo, imagina como seria criar um sistema de catalogação para uma Biblioteca Infinita. Estrutura que lembra o próprio Porto, a qual é um hotel labiríntico que guarda livros e leitores por extensões nunca bem definidas. Para quem gosta dos trabalhos do argentino, Erin pode oferecer uma experiência muito boa, e vice-versa.
Sobre os personagens e representação. The Starless Sea é vendido como um livro de representação de personagens da comunidade LGBTQIAP+ (não encontrei informações se a autoria está nessa comunidade), e de fato, isso ocorre. Zachary é um rapaz gay e não apenas o único. Ele é confortável com sua sexualidade (assim como os demais), e há um caráter romântico no decorrer dos capítulos. Mas esse não é o foco, mesmo que seja importante em determinado ponto da história.
Existe algo que pode afastar quando falamos sobre os personagens desse livro. Eles têm vozes distintas, eles possuem bagagens narrativas que os impedem de ser apenas peças ilustrativas no jogo de palavras de Erin, mas ainda assim não é um livro sobre personagens. Existe um foco muito maior nos eventos e no universo, do que numa exploração psicológica de cada um dos personagens. Particularmente, isso não me deixou incomodado, e meus problemas com o ritmo do livro só aparecem nas partes finais quando o ritmo tropeça um pouco em sua (in)resolução. E devo dizer que a parte final (mais especificamente a parte 6, O diário secreto de Katrina Hawkins) chega a ser assustadora e angustiante quando o universo do livro se comporta quase como se estivesse numa narrativa de horror cósmico.
Um ponto a ser comentado sobre o Zachary, e aqui jogo mais como teoria porque não há necessariamente confirmação, é que Zachary não é um personagem branco, mas ainda que sua pele seja descrita como marrom, também não me deu a entender ser um personagem negro. Em determinada parte, é explicitado que sua mãe é uma fortune teller (vidente) que é um termo muito utilizado na mídia anglófona para mulheres ciganas. Não encontrei confirmações de que a autora escreveu visando esse grupo étnico, mas acho que é um ponto a se observar.
The Starless Sea é um livro de fantasia e mistério que foge bastante da produção estadunidense contemporânea do gênero. Tem uma escrita encantadora, uma estrutura que instiga e desafia, e apesar de perder um pouco o ritmo ao final, entrega uma história impressionante, extremamente fiel a linguagem a qual é realizada, e sendo um verdadeiro ode a linguagem escrita e o poder de narrativa.