Ana Sá 19/04/2022
Ler ou não ler... eis a questão?
Certa vez, eu li um livro muito curioso sobre a questão da (não) leitura dos clássicos, mas que acabei nem resenhando porque o acesso a essa obra aqui no Brasil está um pouco limitado (ainda deve haver alguns exemplares na Estante Virtual). Trata-se do "Como falar dos livros que não lemos?", do professor universitário Pierre Bayard, um texto leve que flerta mais com o ensaio e a divulgação cultural-científica do que com teorias densas sobre recepção literária.
Ao contrário do que o título sugere, Bayard não ensina booktubers a enganarem seus leitores. Não se tem propriamente um manual sobre "como falar de livros que não lemos", mas sim a defesa de que a "não leitura" tem também o seu valor. Eu diria que a tese do autor é a de que existe algo entre o "ler" e o "não ler", pois a mídia, a escola, o nosso círculo de amizades, as resenhas, a teledramaturgia, a arte em geral etc. acabam com frequência nos aproximando de algum aspecto ou personagem dos clássicos, o que nos tira da completa ignorância sobre eles. E por isso a conversa também sobre livros que não lemos deveria ser encarada com mais naturalidade, sem constrangimentos, como o próprio Bayard, acadêmico de uma renomada universidade francesa, faz ao longo de seu texto: sem vergonha alguma, ele vai puxando uma nota de rodapé classificativa para cada clássico que ele cita, algo do tipo "livro apenas folheado, mas sobre o qual tenho uma opinião muito negativa", "livro de que ouvi falar, mas do qual tenho uma opinião positiva", "livro desconhecido"...
Pois bem. Recuperei a teoria "da não leitura" de Bayard por duas razões:
Primeiramente, "O que aprendi com Hamlet", de Leandro Karnal, serve muito bem a quem não pretendo ler este clássico de Shakespeare, mas que ainda gostaria de conhecer um pouco mais da obra. Obedecendo a uma combinação de resumo, contextualização e opinião, Karnal oferece uma oportunidade àqueles que procuram por um lugar confortável entre o "ler" e o "não ler" Shakespeare.
Por outro lado, este livro pode ser uma boa companhia para quem, como eu, não quer desbravar sozinha a tragédia. Alternei a leitura de cada ato com o capítulo correspondente do livro do Karnal e me senti muito bem acompanhada. Além de fazer sempre um breve resumo de cada ato, o que nos ajuda a fixar a leitura, Karnal se atenta a pontos muito interessantes, como o papel e o valor social das mulheres e da religião no contexto do autor e da obra; questões de tradução; os significados atribuídos, à época, a aparições/fantasmas e até mesmo a objetos que são mencionados a título de metáfora durante a peça, como é o caso da "esponja", que é citada mais de uma vez em sentido figurado; o conflito entre determinismo religioso e crença religiosa no indivíduo; os significativos da presença pontual de personagens que representam a classe trabalhadora...
Não se trata de um livro de argumentos e referências originais, mas de um bom organizador de ideias. Inclusive, é válido mencionar que "O que aprendi com Hamlet" reúne muito do que o historiador vive dizendo em suas aparições públicas (palestras, youtube etc.), então algumas partes podem soar repetitivas para quem, como eu, já teve contato com esse seu lado "fã de Hamlet". O mérito do livro talvez seja o de dar coesão a argumentos que passeavam, até então, de forma dispersa pela mídia. O resultado, a meu ver, foi bom!
A única coisa de que senti falta foi de um pouco mais de reflexões subjetivas do autor. Eu queria um pouco mais de "o que eu aprendi" e um pouco menos de "o que a obra nos ensina", sabe? O livro está longe de ocupar a estante acadêmica, mas eu acho que poderia ter sido ainda mais pessoal, para fazer mais jus ao título.
E, agora, quase a fechar, justifico mais uma vez a razão de ter introduzido esta resenha com as ideias de Bayard. Com a dupla Hamlet-Karnal, eu, de fato, me dei conta de que apesar de nunca ter lido Hamlet, eu havia lido afinal qualquer coisa de Hamlet! Foi uma primeira leitura com sabor de releitura, um sentimento que só um bom clássico pode nos causar. "Ser ou não ser, eis a questão"... A cena da morte de Ofélia... "Eu poderia viver recluso numa casca de noz"... Quantas são as frases ou imagens de Hamlet que já não haviam cruzado o meu caminho? Portanto, se antes eu já me aproximava do "ler", pois a minha impressão inicial da tragédia (ao encontro das categorias de Bayard) era a de "não li, já ouvi falar e tenho uma opinião positiva", agora eu tenho a certeza de que a minha experiência de "não leitura" de Hamlet era dotada de algum fundamento. Bayard afirmou e eu senti na pele que, afinal, há mais possibilidades de (não) leitura no céu e na terra do que pode sonhar a nossa filosofia!
Por fim, compartilho um conflito ético (bobo) pelo qual passei antes de iniciar a leitura: Leandro Karnal é historiador, e não crítico literário, e me peguei pensando por que eu optaria pelo seu livro em detrimento de fazer uma escolha a partir da densa produção já existente no campo dos Estudos Literários. E a honestidade intelectual do autor me ajudou nisso: o próprio Karnal admite e explica esse ponto na introdução, reconhecendo que quase tudo sobre Hamlet já foi dito por seus estudiosos, e que portanto "O que aprendi com Hamlet" corresponde à experiência de um leitor cuja biografia é atravessada por tal peça, e não a uma obra para eruditos ou especialistas. Ele também tem sempre o cuidado e o rigor necessários de referenciar um ou outro estudo sobre Hamlet, a começar pelo destaque às trocas que ele fez com a tradutora Valderez Carneiro da Silva, que, mesmo não sendo especialista na obra, é uma profissional da área de Letras, especialista em língua inglesa. Ou seja: longe, como eu disse, de abraçar o academicismo, eu diria que "O que aprendi com Hamlet" é um convite a uma leitura a dois, para quem procura a companhia de um leitor que, além de maduro, é um entusiasta fervoroso deste título de Shakespeare. Para mim, foi uma acertada escolha para garantir uma experiência mais prazerosa e enriquecedora.
Obs.: sobre Hamlet em si, eu li a tradução do Millôr Fernandes e a recomendo fortemente a quem, como eu, procura uma tradução leve e fluida.