João Pedro 08/06/2022Morte em crise"As intermitências da morte" foi um livro que me pegou pela premissa - a par, claro, de ser uma obra de Saramago, autor do qual eu já havia lido e adorado o livro “Caim”. Já na quarta capa tem-se o trecho que marca o início da trama, no qual se lê o seguinte: "No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado [...]" (p. 11).
É isso mesmo. Nesse romance, em determinado país, no dia primeiro de um ano novo, ninguém mais morre. Essa ideia intrigante foi suficiente para me atrair. Mas Saramago foi tão genial que conseguiu extrair de inusitado cenário uma oportunidade para escrever um romance com vezes de ensaio, ora profundamente filosófico, ora incisivamente mordaz, descrevendo em nuances quais rumos a sociedade imaginária tomaria caso a morte resolvesse parar de trabalhar.
Considero que esse livro possui duas tramas distintas. Em um primeiro momento, Saramago nos mostra a dimensão coletiva da ausência da morte. Sem focar em personagens específicas, ele põe em xeque as ações do governo, da sociedade civil, da igreja, dos filósofos, da ciência e de tantos mais setores, tornando a experiência muito mais factível do que fantasiosa. Foi nesse ponto que senti certo enfado na leitura. Depois, porém, o enredo se volta para uma personagem específica, e aqui me abstenho para não quebrar surpresas, mas desde logo garanto que é a melhor e mais intensa parte do romance.
Penso nunca ter lido um narrador tão imparcial e destacado da história. Saramago, como um exímio contador de histórias, faz-nos sentir como se estivéssemos vendo a um filme, com ele a nosso lado descrevendo cada cena. Saramago genial.