spoiler visualizarLu 08/07/2020
Ler ou não ler, eis a questão
A resenha de hoje será sobre um livro que está gerando um debate enorme e por isso, eu queria deixar um recado: a arte é capaz atingir várias pessoas de maneiras diferentes, logo a leitura gera sensações que serão únicas para cada pessoa, sendo assim, leia resenhas, se informe, some isso ao que você acredita, discuta e então chegue a uma conclusão. Acredito que esse livro abriu discussões interessantes que podem ajudar na hora de entender melhor o texto em si e as intenções da autora e opiniões não são excludentes, tá tudo bem gostar ou não da obra, mas leia para alcançar suas próprias conclusões.
Doze anos após o lançamento de Jogos Vorazes, Suzanne Collins convida os leitores de todo mundo a revisitar Panem, dessa vez, pela perspectiva de Coriolanus Snow e mais de meio século antes da história protagonizada por Katniss Everdeen. A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes é o mais novo romance da autora que abraçou a ousada tarefa de dar voz a um personagem tão odiado pelos fãs da trilogia que fez sucesso tanto na literatura, quanto nos cinemas.
O livro é dividido em três partes que juntas são capazes de explicar a trajetória do personagem principal e como ele se tornou o tirano que conhecemos, são elas: The Mentor, The Prize e The Peacekeeper (li em inglês e ainda não peguei a versão traduzida, perdão). Inclusive, essa divisão nos permite deslumbrar, perfeitamente, como será a adaptação da história para o filme, percebe-se que a autora já o escreveu tendo em mente a adaptação que seria feita.
Logo no início, o leitor se depara com os relatos de Coriolanus, em seus 18 anos, sobre a guerra, a perda dos pais e a ambição de recuperar o prestígio do sobrenome Snow, pois mesmo sendo reconhecida pela elite da Capital, a família ainda passa fome e vive sob a tensão de perder a casa. O jovem acredita que só conseguirá melhorar de vida conquistando uma bolsa para a faculdade, mas tudo fica mais complicado quando a Academia em que estuda decide selecionar jovens para a missão de atuarem como mentores na décima edição dos jogos vorazes, a fim de tornar o evento mais atrativo.
Snow é destinado a trabalhar com Lucy Gray, tributo do Distrito 12 (pois é rs), a principio, a personagem demonstra fragilidade, contudo logo conquista a atenção de todos por conta da sua personalidade excêntrica, fruto de uma descendência artística. A aproximação dos personagens se torna inevitável até que os dois se apaixonam e Coryo, como é chamado pelos mais íntimos, ganha mais um motivo para sair vitorioso dos jogos.
Através da obra, a autora pretende mostrar como o Snow se tornou o grande vilão da trilogia, aquele que o leitor ama odiar e de certa forma, Suzanne cumpriu essa premissa, mas não espere uma construção de caráter ao nível ?Joker?, pois tudo transcorre de forma lenta e gradual. Coryo foi moldado pelo desgaste emocional que as consequências da guerra estabeleceu em sua vida e pela lavagem cerebral que a Capital impõe aos seus habitantes, contudo, ele não é um injustiçado, Coriolanus teve oportunidades para mudar seu pensamento, tanto por influência direta de Sejanus, o amigo rebelde, quanto pela vivência no Distrito 12, já no final da história.
Entretanto, do começo ao fim, chama à atenção as atitudes egoístas do personagem que sempre se coloca em primeiro lugar, por exemplo, a ação de entrar na arena para salvar Sejanus, Coriolanus só a teve para preservar suas chances na universidade e posteriormente, o próprio reflete inúmeras vezes sobre como tirar proveito desse fato para conseguir dinheiro. Não obstante, ainda que acredite nutrir sentimentos por Lucy, a todo momento o protagonista infere que a vitória desta também será benéfica para a manutenção do status quo dos Snow, além de questionar a lealdade da garota mesmo quando os dois estão num tipo de relacionamento.
O maior trunfo de Suzanne é em nenhum momento ter romantizado o protagonista, sendo o final apenas uma certificação de que Snow é mau caráter e isso vai muito além da influência de qualquer fator externo. Outro ponto positivo é a forte crítica ao modelo de governança da Capital que em muito se assemelha com a realidade, é explicitada a subversão exercida sob seus habitantes, para que acreditem que a guerra é inevitável, pois o ser humano é ruim por essência, logo, cabe aos mais ?desenvolvidos? assumirem o poder, a fim de evitar o conflito, além disso, os organizadores dos jogos desumanizam os cidadãos dos Distritos para que não pudesse haver uma relação de empatia entre os povos, referência direta às práticas de segregação, como a eugenia e tendo em vista a baixa aceitação dos jogos, tudo foi moldado para atrair audiência, mostrando o poder da mídia na sociedade.
Contudo, Coriolanus não instiga afeição, não atrai carisma e o sofrimento da Capital não comove, visto que o leitor já sabe não se tratar dos mocinhos da história, isso torna a leitura um desafio e um mero relato histórico, uma forma de desvendar como a Panem de Katniss e Peeta se tornou o que é. Apesar de ganhar mais fôlego com a presença de Lucy Gray, a personagem não é aprofundada e o livro só engrena da segunda parte em diante, ainda assim, não é nada parecido com a experiência que os três volumes de Jogos Vorazes proporcionam, a narrativa soa arrastada em alguns momentos, como se certas passagens durassem mais do que deveriam.
A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes é um prequel lento, com personagens que atraem pouca afeição, mas ao contrário do que pode se pressupor, é uma experiência válida aos fãs da trilogia, pois faz várias referências ao que será apresentado em Jogos Vorazes. Além disso, a obra mostra a tentativa de Suzanne Collins em escrever uma história mais reflexiva e desafiar seus leitores saírem do lugar do comum, já que estamos falando de um texto com inúmeras críticas sociais que se refletem na sociedade e o mais importante: não apresenta heróis e muito menos um final feliz, mas sim que toda ação humana tem a capacidade de causar reflexos que podem afetar toda uma coletividade, tanto pro bem, quanto pro mal.
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