Vania.Cristina 27/03/2024
Música, cães e fantasmas
O protagonista dessa história é um famoso cantor de rock chamado Jude, já com 53 anos. Tudo começa quando ele resolve aumentar sua coleção pessoal de itens macabros, dando um lance num leilão virtual. O item oferecido é o fantasma de um homem, acondicionado num paletó. Jude dá o lance mais alto no leilão e recebe a peça. À princípio não dá muita importância para a própria compra, que não imagina se tratar de um fantasma de verdade. Só queria mesmo era arrematar mais um item bizarro para sua coleção. No entanto, o paletó está realmente assombrado, e o homem morto está ali propositalmente atrás dele, buscando por vingança.
Já faz tempo que Jude segue carreira solo enquanto músico, e se encontra cada vez mais cercado pela morte. Um dos membros da sua antiga banda morreu de Aids e outro sofreu um acidente de carro fatal.
Jude vive dos sucessos do passado e de uma imagem irreverente e mórbida, construída e alimentada cuidadosamente. Essa identidade inventada ainda é vendável, o que lhe garante uma vida de conforto, prazeres rápidos e relacionamentos superficiais. É um homem rico, divorciado, sem filhos, sem família, que namora mulheres góticas, bem mais jovens que ele.
A atual namorada ganha dele o apelido de Geórgia, porque esse é o Estado de onde ela veio. Antes dela havia Flórida. E antes desta, outros Estados. Essa é uma forma que ele encontra de colocar limites nos relacionamentos que tem. Dizer o nome verdadeiro da garota pode significar dar a ela valor, uma real identidade.
Pois é... o protagonista não é um cara fácil de gostar num primeiro momento, principalmente se você for uma leitora mulher. Mas no decorrer da história, o autor vai descascando essas camadas machistas e superficiais, e aos poucos vamos conhecendo o lado humano e sensível de Jude. E quando ele se abre e se revela, o encontramos amparado, não vai precisar encarar essa jornada aterrorizante sozinho.
Todos os personagens do livro são carregados de traumas. Jude inclusive. Sua origem é humilde, cresceu pobre numa fazenda de porcos, sofrendo abusos do pai violento e assistindo a impotência da mãe, submissa, apática, depressiva e omissa.
Ainda menino, descobre na música uma alternativa, uma forma de fugir daquilo tudo. A única coisa boa que Jude adquiriu na fazenda, e carrega sempre com ele, é o amor pelos cães.
Essa é uma das coisas que mais gostei no livro: o papel que os cães vão ter na história é importantíssimo. Aqui, eles estão lado a lado com os humanos nessa batalha entre o bem e o mal.
Foi meu primeiro contato com o autor e gostei muito da experiência. Acredito que ele honrou o trabalho do pai (Stephen King), a quem dedica o livro. É um terror psicológico tenso, sombrio e sobrenatural, repleto de aparições de fantasmas, onde os personagens correm riscos de vida, e onde o sofrimento é mental mas também é físico. O mal adoece as pessoas, causa ferimentos que inflamam, latejam, sangram e apodrecem... e isso é frequente na história.
Podemos ouvir o rádio com Jude, a história tem muitas referências musicais. Há um momento em que o acompanhamos compondo, e podemos perceber que debaixo de todas aquelas camadas superficiais ainda encontramos alguém que se deixa tocar pela arte ancestral, mítica, que vem de lugares profundos. E aí ele se fortalece para a batalha que está travando. E, consequentemente, nos fortalece também.