Juh Lira 14/10/2016Sandman - Além dos mitosQuando contamos histórias de conto de fadas ou os contos das mitologias, não nos importamos em questionar as origens de tais histórias ou até mesmo a verossimilhança com a realidade. Narramos as aventuras de João e Maria, Teseu e Hércules da forma mais natural possível, como se eles estivessem gravados no nosso subconsciente como uma informação genética. Não perguntamos, apenas ouvimos e passamos adiante.
Assim é também com o protagonista dessa HQ do mestre Neil Gaiman. Sandman (ou Morfeus) simplesmente existe e faz parte das histórias da humanidade desde o começo, assim como a Morte, o Desejo e o Delírio, os chamados Perpétuos. Ele sempre estava ali, à espreita dos seres humanos, às vezes como uma ajuda, outras vezes como um presságio. Mas o maior dever do Senhor dos Sonhos é garantir que a humanidade encare a realidade do sonhar sempre, seja sonhos bons e ruins.
Com a primeira edição lançada em 1989 pelo selo Vertigo da DC Comics, Sandman se estabelece como uma mitologia pós moderna encarando os mais obscuros desejos e anseios da humanidade - vingança, poder, manipulação, desejos carnais, tudo. Os personagens que Sandman encontra ao longo dessas vinte primeiras histórias da edição definitiva, mostram que as pessoas podem ser extremamente maldosas, ao mesmo tempo que poucas conseguem ser de fato, bondosas e caridosas. Porém os Perpétuos também refletem o lado bom e ruim na humanidade, tal qual os deuses da mitologia que conhecemos.
Um exemplo disso é o arco Casa de Bonecas, que na verdade se inicia logo nas primeiras histórias. Sandman foi capturado por uma seita por engano, agravando em problemas sérios no mundo dos sonhos com a ausência de seu mestre. Durante esse período, Rose Walker nasce sem nem ao menos imaginar que a sua família carrega uma herança dessa época muito perigosa, colocando todos à volta da menina em risco. Eu sinceramente me surpreendi muito com a resolução desse grande arco em particular, pois Gaiman te pega de surpresa e é muito difícil deduzir as reviravoltas.
Aliás, reviravoltas é o que não faltam e um tom sombrio e até mesmo assustador permeia todas as histórias. Tanto que os traços da HQ são escuros e dá uma sensação de abandono, um trabalho interessante dos artistas Dave McKean e Leigh Baulch no qual a continuidade ficou no encargo de Sam Kieth e Mike Dringenberg. Os retratos violentos e maldosos são feitos sem pudores justamente para dar um pouco de medo - vou confessar que sim, fiquei com medo rs. Não somente medo, como também triste e amarga pelo destino de alguns personagens que passam por Sandman. Acredito que foi uma forma inteligente de fazer o leitor se sentir dentro da trama.
O protagonista não é nenhum tipo de herói ou vilão, mas Sandman compreende como a humanidade funciona e seus deveres para com o seu reinado. Há momentos de heroísmo, assim como também momentos de egoísmo movidos pelas obrigações que precisa cumprir. Dá para perceber que o fardo que o personagem carrega é grande, até grande demais para ele mesmo. No entanto, Sandman segue em frente nunca olhando para atrás ou para outras possibilidades. Ele é imprevisível e você não consegue deduzir inicialmente suas ações e decisões.
Eu tenho as minhas histórias favoritas desse primeira volume que são elas: Sonho de Uma Noite de Verão, que nada mais é do que Sandman encontrando-se com Shakespeare e uma reprodução da peça de forma sensacional, Sonhe um Breve Sonho Comigo, o já citado arco Casa de Bonecas até Corações Perdidos, O Som de Suas Asas e Contos na Areia. Preciso dar os parabéns para a editora Panini pela excelente tradução e edição em português, pois a HQ ficou muito bonita.
Entre poucos finais felizes e muitas tragédias, Sandman retrata os dramas e pesadelos da humanidade utilizando-se da fantasia como meio, e não fim. Sou suspeita para falar de qualquer coisa do Gaiman porque sou fã declarada dele, mas sem dúvidas esta é a sua obra-prima até hoje.
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