Margô 04/07/2017A arte de ser lido (e de ler)Quando se fala de literatura para um público que está inserido às margens, corre-se o risco de ser tachado como antiquado, lunático etc. Falar de literatura como algo que pode remediar - ou simplesmente apaziguar - dores, é algo ainda mais passível de julgamentos. Entender a literatura, a leitura sobretudo, como algo que vai além de uma válvula de escape momentânea ou um entretenimento "bobo", é uma atividade que necessita de muita desconstrução de conceitos e estereótipos.
Não é, a ninguém, escondido que há no objeto livro um certo quê de inacessibilidade. Um quê de supérfluo, de esnobe.... Invadir, com esse objeto livro, um espaço devastado, mostrar àqueles ali inseridos que é, sim, acessível a eles, esse emaranhado de letras, frases, parágrafos e que, acima de tudo, eles querem dizer algo ao mundo (não apenas tristes histórias de amor, que terminam de maneiras clichês, ou grandes finais felizes "e viveram felizes para sempre") é um árduo trabalho necessário.
A nós, leitores assíduos, o livro já manifesta, há tempos, a função de abrigo, de leitor de nós. Porque, muitas vezes, sequer lemos o livro da maneira objetiva. O livro, às vezes, é que nos lê e, a partir dessa leitura que faz de nós, nos transforma. Por que seria diferente àqueles que, muitas vezes, se armam até os dentes de proteções contra os livros? Michèle Petit, em uma passagem diz que talvez aqueles que mais se negam a leitura, são os que mais precisam dela. E isso é, talvez, uma grande verdade. O por que dos talvez? É porque nem sempre é oferecido àqueles marginalizados o direito à literatura, o direito à escrita, à decifração de si.
Neste livro, sabiamente intitulado de "a arte de ler", somos colocados frente às duras realidades de pessoas que, devido às dificuldades que encontram nos caminhos da vida, estão isolados, trancafiados em si; transformam em pedra seus olharem e vislumbram - se vislumbram - "melhorias" bobas acerca das suas situações. Vemos, através das evocações dos depoimentos de diversos mediadores/contadores de histórias, a revolução que a literatura é capaz de fazer no seio onde é aceita.
As pessoas precisam de histórias. Histórias para apaziguar suas intermináveis tempestades, para remediar seus pensamentos amargurados. Histórias que sejam capazes de os transportar para além daquele mundo delimitado por paredes (e, em alguns casos, delimitados pela noite à céu aberto, em lugares devastados demais para se olhar a beleza do céu), que os mostre que há, em outro lugar, ali perto ou ali longe, alternativas para seus sofrimentos. As pessoas precisam de histórias que metaforizam suas dores para que eles possam entendê-las, pois, não querem encontrar espelhos, que os farão sofrer ainda mais, sozinhos. Querem sentir-se próximos de heróis, ou, ao menos saber que não estão sozinhos. Querem aprender a ter voz, a pensar por si próprias. Querem saber falar o que está, há muito, entalado na garganta. E o que mais os daria essas palavras senão a literatura? Senão a apropriação do objeto livro? Senão a apropriação das suas próprias culturas e, também, da escrita?
Petit perpassa por lares que muitos leitores construíram com base no relacionamento estreito com os livros. Mostra a intimidade que alguns falam sobre seus autores favoritos, como se fossem amigos íntimos, demarcando ali, sua inegável presença nas histórias contadas por eles. Cantando, a plenos pulmões, o seu lugar, conquistado com base no salto que a literatura os permite.
Longe de ser um exercício de mera tradução de códigos, decifração; a leitura é a bagunça que acontecerá dentro de cada um que ela ousar tocar. Ao abrir um livro, ou sentar para ouvir um leitor em voz alta, o leitor ou ouvinte, será imediatamente alçado para o universo aberto, onde tudo é possível, onde tudo é troca. Em todo livro acabado, há o lugar vago do leitor, que constrói a história com base nas suas vivências. Nenhuma história está perfeitamente acabada, como nenhum leitor está perfeitamente formado.
Petit nos incube da missão de descaracterizar a imagem do livro como algo inacessível. Nos incube a missão de levar adiante a prática da leitura, como algo prazeroso, livre, divertido, reflexivo. "A leitura é uma arte que se transmite mais do que se ensina [...]" (p. 22), se assim de fato é, que sejamos, todos, transmissores da leitura. Que carreguemos conosco a preocupação de fazer serem lidas as pessoas; lidas pelos livros que estão parados, necessitando serem ocupados.