Gabriel 10/04/2021
''Nós temos medo do corpo. Nós o vemos como lugar da degenerescência, da mortalidade e do descontrole.'' - Maria Homem
O livro apresenta inúmeras reflexões extremamente relevantes para qualquer um que esteja interessado em refletir sobre o feminino e os feminismos que vemos ganhando cada vez mais espaço.
Contardo e Maria destrincham as raízes da repressão contra o desejo sexual feminino, da lamentável cisão que coloca a mulher entre dois extremos: a mãe (a santa, sem qualquer desejo sexual ou autonomia) e a puta (a lasciva, degradada, presa aos prazeres do corpo), mostrando o quanto essas construções históricas geraram não apenas uma repressão contra o desejo feminino mas também um verdadeiro ódio contra as mulheres. Embora a igreja tenha tido papel importante na germinação desse ódio ao feminino, o recalque a tudo que diz respeito ao corpo e ao desejo é bem mais antigo, vindo ao menos desde os tempos platônicos. Será mesmo que corpo e alma estão separados? Por que queremos salvar um para condenar o outro?
Os dois psicanalistas perpassam por outros pontos bastante relevantes e debatidos, como a maternidade como suposta vocação natural da mulher, o papel da família como instrumento de reprodução social da narrativa dominante e até mesmo a ''mercantilização'' da questão transgênera, com o mercado cada vez mais interessado em oferecer opções para que pessoas possam modificar seus corpos biológicos a bel-prazer, não por bondade, mas por interesses econômicos e as possíveis consequências que podem derivar disso no futuro. Será que essa singularidade de corpos é totalmente positiva? Ou esse grau de liberdade cada vez maior, de um mundo onde nosso corpo biológico é apenas um ponto de partida e podemos ser o que quisermos, do jeito que quisermos, modificando não apenas o formato de um nariz ou dos lábios mas o próprio sexo, irá nos gerar ainda mais angústia?
Recheado de provocações das mais interessantes, Contardo e Maria não fogem de polêmicas, como nos últimos capítulos, onde tratam da objetificação inerente ao desejo e ato sexual, bem como das fantasias mais obscuras que por vezes tentamos esconder até nós mesmos quando o assunto é sexo. Isso, claro, sempre voltado ao corpo e aos desejos da mulher.
Ainda que se trate de um diálogo, o livro é rico em conteúdo, com vasta fundamentação histórica e psicanalítica, além de referências que vão da filosofia a literatura. Vale a pena ser lido por qualquer um que esteja disposto a escutar e se questionar sobre problemáticas históricas, que vem sendo descontruídas a cada dia e que constantemente tomam conta do debate público.