Allef.Wanderson 25/02/2021
Um conto de fadas
100 escovadas antes de ir para cama é um livro autobiográfico. Seu formato é de um diário escrito entre os 15 e 17 anos da autora italiana Melissa Panarello. Contudo, não fica claro na obra os limites entre ficção e realidade, ou ao menos se eles sequer existem. A escrita, ágil e direta, emula um autêntico diário — os capítulos são as entradas da jovem Melissa no caderno, sem seguir à risca a formatação clássica de textos narrativos, o que pode dar a impressão errada de se tratar de um texto sem substância e mal escrito. É como se a autora tivesse apenas publicado, sem revisão, seus registros da adolescência na cidade de Catânia, Itália.
Outro aspecto interessante da obra é sua estrutura semelhante a dos contos de fadas. Melissa é a “princesa” de sua história e, ao fugir da torre do medo e da apatia adolescente no desejo de viver experiências viscerais, se perde num labirinto habitado por monstros internos e externos. É nessa aventura que vemos a personalidade ainda não formada de Melissa revelar suas motivações mais profundas, percorrer os círculos do Hades sem a ajuda de um Virgílio e, por fim, ser resgatada.
Em linhas gerais, Melissa é uma jovem entediada. Aqueles que a cercam não oferecem nenhuma ligação emocional concreta, são relações circunstanciais. Principalmente seus pais, distantes, alheios. A isso a protagonista reage se expondo no mundo. Mergulha em novas relações de peito aberto, com intensidade, mas não encontra reciprocidade. Tudo que ela encontra no outro é objetificação e julgamento. Usando uma metáfora da própria autora, é neste ponto que Melissa se dilui no rio Lete (o “rio do esquecimento” na mitologia grega) atrás de um amor que lhe fora negado, pelos pais e pelos seus pretensos amantes (e até pela própria Melissa). A protagonista mergulha num mar de experiências brutais, degradantes, conhece de perto os piores aspectos da masculinidade, sentindo seus efeitos nos homens, igualmente agressores e vítimas. Mas continua se expondo, pois tudo lhe é preferível ao tédio sufocante da normalidade.
100 escovadas antes de ir para a cama é intenso. Seu formato nos tira da zona de conforto e nos convida a se esforçar para compreender a caótica mente de uma adolescente. Infelizmente, a obra perde o fôlego ao final (feliz), onde as aproximações com contos de fadas ficam mais óbvias. Mas, talvez seja um problema em se contar histórias reais. Fazê-las caber numa mídia é uma verdadeira violência, pois, como se sabe, a vida é um negócio nada linear e que não faz muito “sentido narrativo”, diferente da ficção.
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