Kristine Albuquerque 12/02/2020
"Amanhã há de ser outro dia."
Ainda preciso de uns dias para digerir totalmente esta estória, mas também preciso fazer esta resenha "no calor do momento". Não é à toa que a primeira resenha que escrevi por aqui foi de O Conto da Aia, porque eu precisava falar alguma coisa, qualquer coisa. Margaret provoca isso em mim. Ainda que seja difícil ler e digerir tudo isso, ou talvez por isso mesmo, considero essenciais essas leituras (dos dois livros) nos tempos em que vivemos. Margaret nos entrega uma continuação com muitas respostas que desejávamos, mas o mais marcante aqui é o desfecho e a esperança no futuro, apesar de tudo.
Em O Conto da Aia a narrativa é feita pela June (Offred) e é restrita ao que ela vivia em Gilead, com alguns flashbacks. É uma narrativa intimista, e por isso experimentamos de perto o que ela sente e vive ali. Em Os Testamentos a estrutura muda, e com isso nossas percepções. Temos três pontos de vista e três linhas temporais, que em algum momento convergem para um objetivo. Para quem viu a série, dá para perceber desde a sinopse quem são essas personagens e foi por isso que eu fiquei com tantas expectativas para esta leitura. Felizmente, elas foram cumpridas. Para quem só leu o primeiro livro, talvez a experiência não seja tão completa e até fique um pouco confusa inicialmente, porque a autora incorpora elementos da série e, cronologicamente falando, os acontecimentos principais de Os Testamentos se passam anos após o fim da segunda temporada. (Mais detalhes: A primeira temporada é fidelíssima ao livro e ambos encerram com a mesma cena; a segunda temporada expande o contexto do primeiro livro e funciona como uma ponte para o segundo livro; o segundo livro narra o período pré-Gilead, o durante e o pós, e as consequências após o desfecho da segunda temporada.) Estou tentando resumir ao máximo para não entrar em spoilers, acreditem.
A Tia Lydia é uma das personagens mais complexas e bem trabalhadas que já vi. Já ouviram aquela máxima de "não confundam a violência do opressor com a reação do oprimido"? Pois então. E a própria Tia Lydia diz: "como é que eu pude ser tão má, tão cruel, tão burra?, você vai se perguntar. Você pessoalmente nunca teria feito as coisas daquele jeito! Mas você pessoalmente nunca precisou fazê-las."
A Daisy e a Agnes, as outras duas personagens, são igualmente bem construídas. Elas nasceram no mesmo lugar, mas cresceram e viveram em contextos totalmente opostos e, por isso, têm visões de mundo opostas. O exercício entre elas é superar as intolerâncias que aprenderam desde sempre como naturais e desenvolver a empatia e a disponibilidade do encontro com outras percepções. Necessidade essa das mais atuais aqui mesmo, na nossa realidade. E essa não é a única conexão possível. Há vários temas que a autora faz questão de trabalhar que são tirados daqui mesmo, que vemos dia após dia nas notícias do mundo afora. Como ela diz nos agradecimentos, nos trinta e cinco anos que separam as duas obras ela pensou em muitas respostas possíveis para uma continuação, e muitas dessas respostas já se tornaram realidade.
Ainda que seja injusto - e desnecessário - comparar as duas obras, Os Testamentos é uma excelente continuação e impactante à sua maneira. Não me decepcionei nenhum pouco com os acontecimentos, embora gostaria de ter visto mais o desenvolvimento de algumas relações. Mas isso não é um deslize da autora, e sim algo de provocativo, de nos deixar imaginar como aquelas pessoas viveram a partir dali. E com o simpósio de História, anos depois, vemos algumas brechas desses acontecimentos. Nessa reconstituição, a mensagem: que não esqueçamos o nosso passado. E sigamos resistindo.