Nas escarpas do norte da Albânia, o jovem montanhês Gjorg Berisha dá um tiro de fuzil e toma o sangue de Zef Kryeqyq. É a quadragésima quinta morte de uma vendeta iniciada setenta anos antes, quando um desconhecido foi vítima de um Kryeqyq depois de ser acolhido pelo clã dos Berisha.
A matança entre as duas famílias é uma imposição de Kanun, código moral que há séculos é transmitido de boca em boca nas montanhas albanesas (assim como na região de Kosovo). Os habitantes desses penhascos gelados jamais acataram governo algum - seja albanês, seja dos muitos invasores que por ali passaram -, mas se curvam com fervor à lei não escrita de seus ancestrais.
Cultuado como verdade absoluta, o Kanun é um código de honra tão minucioso quanto cruel. Especifica os menores detalhes da vendeta: quem, como, onde e quando matar; a posição do cadáver; o anúncio da morte; o velório e o banquete fúnebre; o sepultamento da vítima; os prazos da vingança e as tréguas entre os clãs; as humilhações que devem ser impostas à família enquanto ela não "recuperar o sangue" que lhe foi tomado. É toda uma solene, absurda e interminável liturgia da morte.
O Kanun e seus ritos sangrentos impulsionam o enredo de Abril despedaçado. Esse círculo vicioso de execuções pode obrigar um rapaz a se tornar assassino. Matar significa, neste caso, tornar-se um homem honrado. Significa, ao mesmo tempo, consentir em ser assassinado. O jovem Gjorg cumpre seu dever de cobrar dos Kryeqyq o sangue que eles devem aos Berisha, e os Kryeqyq têm agora o direito de recuperar o sangue que lhes foi tomado - os mecanismos do absurdo se realimentam do seu próprio movimento.
Com rigor de antropólogo, Ismail Kadaré vai ao fundo dessa fantástica codificação do assassinato como direito e dever, e arranca de lá toda a fúria de uma tragédia montanhesa.
Literatura Estrangeira / Ficção