Lançado em abril de 2020, Com Sangue é o livro mais recente de Stephen King. Foi muito divertido (e também instrutivo) para mim reencontrar esse autor que foi o meu favorito durante a segunda metade de minha adolescência, depois de ter tomado de assalto o trono que até então era dividido irmãmente por Agatha Christie e José de Alencar.
Os quatro contos de Com Sangue mostram um Stephen King que bem sabe que não precisa provar mais nada para ninguém, mas que, ao mesmo tempo, apresenta um saudável e louvável interesse em se reciclar e experimentar novidades. A maior evidência desse desejo de renovação aparece em A Vida de Chuck, uma narrativa em ordem inversa que apresenta de forma bem interessante a ideia de que cada pessoa contém um universo inteiro dentro de si.
Outras tentativas de atualização, mais superficiais, aparecem nas constantes referências a redes sociais como Facebook, Instagram e Netflix. O que não deixa de ser interessante para leitores de longa data que, como eu, acompanharam a grande transposição realizada por King ao longo de suas obras, transferindo o imaginário das histórias de terror dos empoeirados castelos em ruínas da Transilvânia para as rodovias e centros urbanos do Maine contemporâneo.
Mas o que mais me surpreendeu, em termos de referências atuais, foram as críticas e ironias direcionadas ao felizmente em breve ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Isso me fez pensar novamente sobre como estamos vivendo um momento excepcional na história do mundo, onde todos são convocados a se posicionar. Por sincronicidade, nesse mesmo dia em que termino a leitura de Com Sangue, reli essas palavras de Mia Couto:
O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.
Stephen King falando de Trump poderia ser qualquer escritor brasileiro que se preze falando de Bolsonaro. Não é um assunto que possa ser ignorado. Não é um assunto sobre o qual se possa ser neutro. Ou você é contra, e radicalmente contra, indignadamente contra, ou você é a favor. Se você é isento, se você não se manifesta contra, é porque você é conivente e cúmplice. A demagogia de extrema direita representada por Trump e Bolsonaro, tal como o nazismo, não admite neutralidades. E palmas para Stephen King, por ter demonstrado cabalmente que mesmo em histórias totalmente fictícias de terror e fantasia, o escritor não pode e nem deve se furtar ao dever de combater os monstruosos e mesquinhos terrores da vida real cotidiana.
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