Florentino Ariza não deixa de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores longos e contrariados, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias.
Florentino Ariza não deixa de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores longos e contrariados, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias.
A minha crença pessoal e ferrenha de que a arte literária, por ter uma relação estreitíssima com a subjetividade tanto do artista quanto do leitor, somente consegue firmar a ponte do entendimento no momento certo para que ambos os pólos dessa relação miraculosa possam compreendê-la. Ou, colocando as coisas de outro modo, tudo — mas principalmente a arte — tem seu momento certo e preciso para operar magia. Quando comecei a ler "Cem Anos de Solidão" pela primeira vez (há mais de treze anos), posso afirmar que já reconhecia a boa literatura, mas minha compreensão do texto não passava dessa secura analítica, e por isso (lembro bem) resolvi deixá-lo de lado temporariamente e esperar uma outra oportunidade, que não tardou em acontecer. Mas não vou falar de "Cem Anos de Solidão", claro. O intróito serviu como gancho para explicar por que, antes mesmo de terminá-lo, já tinha comprado "O Amor nos Tempos do Cólera." Agora que o reli, lembrei que foi a primeira frase do livro que me fisgou, fez sua leitura uma obrigação sentimental — “Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados”. Foi um baque de olhos arregalados e depois alguns passos resolutos ao caixa da livraria. O livro é uma longa e intensa poesia em forma (quase não disfarçada) de prosa. Não é simplesmente uma estória de amor mal resolvido, ou de tantas formas de amor quanto possíveis e reconhecíveis. É uma verdadeira epopeia sobre as relações humanas, lindas, brutas e delicadas, enaltecedoras e humilhantes. Florentino Ariza, mais que um homem determinado a passar décadas medindo os passos para conquistar Fermina Daza, contra todos os percalços que a vida ou a sua própria amada impunham contra ele, é, no fundo, todos nós. Quem nunca escreveu cartas de amor que nunca acabaram sendo enviadas? Quem nunca procurou em outras camas o calor que sonhava encontrar na única impossível? Quem nunca sentiu o aperto de ser frio e obstinadamente ignorado justamente pela pessoa por quem vertemos nosso encantamento? Quem nunca chorou de desilusão? Florentino Ariza se apaixonou por Fermina Daza (a quem nunca havia sequer tocado) ainda na adolescência, e o namorico à distância dos dois, recriminado com pavor pelo pai dela, durou anos de persistentes cartas e mensagens de devoção. Quando Fermina Daza, tempos depois, dá-se conta de que o amor que julgava sentir era inventado, e se alimentava de ilusão imaginada, repele energicamente seu pretendente, que, a partir de então, teve que esperar por exatamente cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias para propô-la em casamento. Na primeira noite após o enterro de seu marido. Mais que uma dor de cotovelo prolongada, a espera de Florentino Ariza é o fio condutor de sua vida, e a estória é tão poderosa principalmente porque nunca, em todos aqueles anos e ainda depois de outros, ele fraquejou. Acordava e dormia todos os dias com a convicção inabalável de que teria Fermina Daza junto a si. Não, mais do que isso: sua mocidade, vida adulta e boa parte de sua velhice foram somente uma preparação, estóica, comovente e profundamente apaixonada, para o dia em que Fermina finalmente o aceitasse. É a partir daí que García Márquez, gênio latino-americano da literatura fantástica, desenovela seu texto fluido, carinhoso, e nos confia as amarguras e delícias do amor. Aquele surgido da admiração, da amizade, da necessidade, das dores, da força do sexo, da solidão. O amor que é um convite ao mundo pessoal de cada um de nós. O livro é uma homenagem ao que há de mais humano e nobre, numa narrativa que nunca se permite descambar para a tristeza sentimentalista ou tormentosa; é sempre sensível e tocante, mas sobretudo leve. Quem nunca se apaixonou, que atire a primeira pedra. "O Amor nos Tempos do Cólera" é o amor de sonho que parece faltar no árido tempo presente, em que já não se tem mais a certeza de que os olhos falam (e fazem poesia), em que o medo do amor condena à solidão e ao esquecimento. Aos apaixonados, aos que querem se apaixonar, ao que não correspondem às paixões que lhes são devotadas: recorram às lições de humanidade do professor García Márquez e procurem reconhecer que sempre haverá um Florentino Ariza, calado e esperançoso, reluzindo no olhar de quem merece amor.







