“Um Sopro de Vida” — o último romance da carreira de Clarice Lispector (1920-1977), escrito entre 1974 e 1977 juntamente com “A Hora da Estrela” —, foi publicado postumamente em 1978. O livro é, por assim dizer, um diálogo ininterrupto entre os dois únicos personagens, sendo esses Autor e seu alter ego Ângela Pralini — personagem citada anteriormente no conto “A Partida de Trem”, também escrito por Clarice Lispector —, de quem irei falar sobre mais profundamente com o desenvolvimento desta resenha.
“Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.”
Esta passagem faz parte da epígrafe da obra, onde o Autor — trato o substantivo como nome próprio — procura destrinchar o porquê escreve. A pergunta não possui resposta, pois escreve-se por escrever. O livro é um produto de seu pesar e do viver fatal; nasce no pré-pensar agoniante e derrama em sentidos. Já de início, é possível notar traços autobiográficos, uma vez que Clarice não assumia o título de escritora, tal qual seu personagem. Trago aqui suas próprias palavras da entrevista publicada pela TV Cultura, onde ela diz: “Eu faço questão de não ser um profissional, para manter a minha liberdade.” Clarice Lispector é grandiosa ao passo que se considera amadora — o escrever não é por causa do nome de escriba, mas, sim, pela necessidade de existir. Ela morre quando não escreve, e revive ao nascimento de uma ideia.
“Tive um sonho nítido inexplicável: sonhei que brincava com o meu reflexo. Mas meu reflexo não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu.”
A primeira parte do livro, chamada de “O sonho acordado é que é a realidade”, é onde Ângela Pralini nasce; onde ela recebe o sopro de vida. O Autor mostra-se muito exato — descreve não como alma, mas, sim, como geometria o que o cerca. Mas e Ângela? Ângela não se basta em uma forma geométrica. Que são três dimensões para um ser liberto de si próprio? Exatamente por não possuir corpo, por ser criação, não há números para delimitá-la — ela e o mundo são uno. O Autor corta o segmento de seu triângulo existencial ao usar de sua área para dar voz à Ângela, porém ao fazer isso, não há mais triângulo; o interior não iguala a 180°; ele perde o que o nomeava e mistura-se com o que há de externo, o que há de Ângela Pralini.
Ele deu um pouco — pouco que é tudo — de si na criação desta mulher enigmática. Dialogam, mas o Autor a teme em certo modo. Tenta explicá-la e, principalmente, dar sentido linear ao que ela diz. Ângela, desacostumada com o novo existir, diz ao mundo suas primeiras palavras: “Viver me deixa trêmula”. Ela testa primeiro o absurdo de ser, brincando com as sensações e proclamando perguntas como se fossem pedrinhas em um lago parado, mas aos poucos percebe que o lago era, na verdade, um oceano; suas pedrinhas, areia. E, assim, a complexidade e as interrogações tornam-se abalo sísmico.
“AUTOR. – A palavra é o dejeto do pensamento. Cintila.
Cada livro é sangue, é pus, é excremento, é coração retalhado, é nervos fragmentados, é choque elétrico, é sangue coagulado escorrendo como lava fervendo pela montanha abaixo.
ÂNGELA. – Oh não quero mais me expressar por palavras: quero por “beijo-te”.
AUTOR. – Eu ocasionalmente, eu que escrevo, procuro para cada palavra o estalar inconsciente de um sentimento cruciante.
ÂNGELA. – Tenho vontade de escrever e não consigo.”
Sobre a segunda parte serei breve, pois ela própria não dura entre as páginas. “Como tornar tudo um sonho acordado?” é o nome deste capítulo, onde ambos expressam a conexão entre a escrita e o existir. Para Ângela é algo almejado, bruxuleante e curioso tal como uma pedra preciosa. Ela sonha com um romance, mas não possui a paciência, a frustração e a entrega para isto; assim, se deleita em sua forma única de paraliteratura. Já o Autor passara pela intensidade de escrever uma obra em toda sua completude — sabe a morte que o ato carrega. Há esta dança artística, e nem por isso bela, entre a necessidade e o querer.
“ÂNGELA. – Na hora de minha morte – que é que eu faço? Me ensinem como é que se morre. Eu não sei.
AUTOR. – Perdi o Livro de Ângela, não sei onde deixei a vida dela.
ÂNGELA. – Obra? Não, eu quero a coisa prima. Quero a pedra que não foi esculpida.
Eu me curei da morte. Nunca mais morri.
Eu vejo tudo como se eu já tivesse morrido e visse tudo de longe. Então vem aquela tristeza de teia de aranha em casa abandonada. O que distrai é o ódio espumante. Ódio seco e fustigador.
Pensar é tão imaterial que nem palavras tem. Nunca se esquecer, quando se tem uma dor, que a dor passará: nunca se esquecer que, quando se morre, a morte passará. Não se morre eternamente. É só uma vez, e dura um instante.”
Ah, “Livro de Ângela”, minha parte predileta! Clamo por ela mais do que pelo ar que respiro — valorizamos as coisas com um frenesi descomunal quando não mais a temos. Como uma ampulheta banhando-se na poeira da negligência, até que um esbarrão a faça colapsar contra o piso gélido; ninguém importava-se para com ela até este momento de extravagância! Que ousadia a pequena se espatifar no chão; quem a permitiu estar naquele canto em que eu a deixei há tempos, e, ainda por cima, mover-se e causar tamanha bagunça? Por muitos outros dias, quem sabe anos, serei condenada a achar um pedaço perdido de vidro no chão, e sentirei uma certa falta daquilo que já era tão familiar. A sensação de terminar a obra é tal como essa que descrevi, exceto pela indiferença (como se, durante, eu pudesse precedir que a ampulheta iria cair): a saudade eterna de algo que não voltará, valorizado após a fatalidade de ler a última linha. Uma leitura de caráter belo, que corrói por dentro... um embrulho no estômago que cresce, mas que, no fim, sabemos que o nome da sensação já nos era conhecido: vida! O embrulho sairá somente com o último sopro.
É do saber de todos que um escritor pode moldar-se. Isto é, transforma-se em seus próprios personagens, criações, se é que já não o era completamente antes. Sei que descrevi o Autor e Ângela Pralini como seres separados até o momento, mesmo que correlacionados, mas um livro de Clarice não faria o favor de ser simples assim. O livro é, profundamente, a relação entre humano e vida; escritor e personagem. Explicarei esta “bagunça” literária, veja só. O Autor criou Ângela para poder dividir esse embrulho no estômago com um ser semelhante a ele, sendo este ser a sua versão melhorada; uma versão em que não há inibições da própria existência. Ângela é nua, tal qual suas palavras. Não há contenção, apenas os desejos — se pudesse, ela viveria a vida num só segundo, para, então, experienciar o instante de morte logo depois. Digo isso para distinguí-los, mas ambos são o Autor. E, com isso, termino meu pensamento: são Clarice Lispector.
“Às vezes, só para me sentir vivendo, penso na morte. A morte me justifica.”
Mal acredito que consegui verbalizar essa conexão intensa! Descasquei lentamente o livro, começando com a visão geral da obra, depois os capítulos, os personagens, as sensações e cheguei em sua essência: Clarice. Esta leitura possui um caráter um tanto quanto autobiográfico; o percebi mais ainda quando fiz a minha pesquisa sobre e, ah, descobri tanto! Muito provavelmente Clarice sabia que esse manuscrito não seria publicado enquanto vivia; desde o início fora destinado a ser seu sopro mais íntimo — o final. Em “Livro de Ângela”, a personagem faz vários pedaços de paraliteratura, realmente pequenos, em que descreve objetos de uma forma humanizada. Muitos dos objetos escolhidos são da própria casa da escritora.
Sinto-me até errada, por assim dizer, em escrever o que havia de sensível em outro alguém. Mas fiz a escolha sozinha de digitar isto, então o farei; precisava expelir um pouco do sentimento em todo caso. Durante o decorrer da terceira e última parte da obra, o assunto torna-se muito voltado à morte. Não com desespero, não; isto era mostrado somente com vida, e isso diz muito sobre o significado inteiro do livro. Clarice previa e sentia seu fim aproximar-se, como um sonho em que se é possível sentir o movimento inconsciente de nossas pálpebras, e temos a sensação de que logo iremos acordar.
Olga Borelli — amiga próxima e secretária de Clarice Lispector — foi a responsável por organizar esta obra. Alguns fragmentos foram retirados por ela, e meu coração quase sai do lugar quando li um deles. Era um trecho onde Ângela refletia sobre a morte, mas guardava a fagulha de tragédia do acaso, em que ela desejava obter algum câncer para morrer repentinamente, exatamente como ocorrido no destino de Clarice.
“Eu não tenho uma só resposta. Mas tenho mais perguntas do que outro homem pudesse responder.”
Este não é um livro feito para as visões críticas, muito menos para palavras! Que digo? Adjetivos não bastam; preciso de frases, parágrafos, sendo que tudo isto é apenas um prólogo de sentimento. Perdoe-me, terei de ser abstrata para trazer, talvez, a intensidade de um sopro incerto. Escute Claude Debussy e trate as últimas teclas do piano como o início da próxima peça; sinta com todos os poros de sua face uma única lágrima escorrer pela pele hoje viva, mas se espante ao notar que chora; semicerre os olhos ao analisar a ponta do dedo ferido, e reflita onde foi que se cortara; respire profundamente em um ambiente abafado e depois permita-se voltar ao fluxo habitual de oxigênio...
LUIZA. — Não sei como e porquê explico. Seria eu capaz de explicar o som da voz de uma pessoa amada para alguém que nunca experienciou a melodia? Ou descrever as cores para outrém? Digo outrém, sim, pois não se é necessário a cegueira. Ora, se todos que enxergam possuem tons e cores prediletos variados, não se pode presumir que serei imparcial ao citar a coloração que me é a mais querida. No entanto, acho que seria capaz de fazê-lo ao descrever um arco-íris, pois seria o conjunto, não uma de cada vez. Pense, por exemplo, na sociedade; quando temos de a descrever, falamos sobre o conjunto, não sobre os poucos que amamos dentre os bilhões de desconhecidos.
CLARICE. — Morre-se uma vez ou mais durante a vida? Todo dia morre-se, ao menos quando iremos para cama dormir e o fazemos. Pequenas mortes despercebidas no quotidiano que nos preparam para a mais letal de nossa existência. Morres tu desta forma como eu?
LUIZA. — Ah, Clarice! Sei que tu és uma cópia da Clarice Lispector verdadeira feita por mim, mas o espanto continua o mesmo. Não me sinto capaz de dar a voz a mim mesma no papel, imagine a ti. Perdoe-me pela frustração... mal sei como ser eu. Perco até o fio íntimo de devaneio em que me encontrava.
CLARICE. — Os minutos são preciosos.
Não comandamos nossa própria atenção. Ela vem sorrateiramente por detrás dos olhos e permanecem lá até que percebamos sua presença e a espantemos sem ter a intenção disso. O existir de tudo me deixa trêmula. Tenho medo de rosas vivas porque elas são tão frágeis e frajolas e porque morrem num piscar de olhos. Gosto de conversas por não morrerem, elas somente acabam.
LUIZA. — Sinto que Clarice irá escrever quanto quiser agora que a dei liberdade de o fazer. Terei de terminar a resenha por aqui, antes que isto se torne um livro acidental! Ah, onde estava?... Sim! O sentimento que o livro causa. Considere a obra um beijo carinhoso de Clarice, daqueles que se dá na testa antes de uma criança cair no sono. Somos as crianças, embriagadas demais pelo cansaço para perceber que este seria seu último sopro de vida.