Como incendiar uma biblioteca e sair impune

Como incendiar uma biblioteca e sair impune Tatiana Carvalho


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Como incendiar uma biblioteca e sair impune





Leia abaixo o conto "A cirurgiã de livros", que integra "Como incendiar uma biblioteca e sair impune", de Tatiana Carvalho:

A cirurgiã de livros

Detesto livro grande. As pessoas acham que, só porque eu sou bibliotecária, tenho obrigação de gostar de livros. Eu até gosto, mas gosto de livros razoáveis e que não testam a nossa paciência. Claro, há livros que têm todo direito de ter quinhentas, oitocentas, até mil ou mais páginas. São as enciclopédias, dicionários, grandes manuais. Imagine um Manual de Ortopedia. Ou uma História da Segunda Guerra Mundial. É muito assunto, não tem como ser breve. E também tem os clássicos. Grandes clássicos têm licença para ser grandes. Eles têm um valor universal e não resistiram ao tempo à toa. Mas não me venha com esses romances policiais, livros de terror, dramas familiares e até histórias eróticas com mais de
trezentas, quatrocentas páginas. Não tem a menor necessidade.
Quem quer saber se o bolinho que o detetive está comendo no café é de baunilha ou de chocolate? Isso vai fazer alguma diferença na trama? Se não vai fazer, para que encher os livros com esse tipo de detalhe ridículo? Eu pulo essas partes todas. Não sou obrigada a perder tempo. Livro não é casamento nem contrato de trabalho. Não sou obrigada a ler todas
as palavras de todas as páginas até o fim. Se me irritar demais, não termino mesmo. Não sei nem por que os editores ainda publicam esses livros. Justo na era do Twitter e do TikTok, da comunicação com no máximo 200, 300 caracteres, em que os diálogos se resolvem com quatro ou cinco emojis e nossas questões existenciais têm que caber neles, inventam livros
com mais de quinhentas páginas. E que nem serão clássicos. Façam-me o favor. Dito isto, acho que os livros grandes são um abuso nas bibliotecas. Ocupam espaço demais. Estragam com facilidade porque ficam apertados nas bolsas das pessoas que têm desprendimento emocional suficiente para levá-los para casa. São pesados e manuseados de qualquer jeito. E depois, dão mais gastos porque precisam ser reformados o tempo todo. São um desperdício de recursos públicos.
Eu desincentivo a leitura e a circulação desses livros. Claro, como já disse, há
exceções. Mas se vejo alguém curvando a coluna e com os bíceps saltados por causa de um remake qualquer de Romeu e Julieta – porque, convenhamos, desde o século XVII que copiam descaradamente as tramas de Shakespeare só mudando os nomes dos personagens e os cenários, repetindo os mesmos dilemas – eu já trato de fazer a pessoa desistir. Já conto todos os pontos negativos da escrita e, se a pessoa insiste demais, eu conto o final. Como as pessoas só leem para saber o final, elas acabam desistindo. Já levei uma advertência da minha chefe por causa disso. Você não pode continuar com essas atitudes, ela disse. Não é a primeira vez que recebo esse tipo de reclamação, ela disse. E eu disse: “Isso só prova que
as pessoas só querem saber da trama. Se elas gostassem dos detalhes, não protestariam porque eu revelei o fim da história”. Se gostassem de saborear os detalhes, de saber do bolinho de baunilha ou de chocolate, que diferença faria saber que a mocinha morre no final?
Elas leriam de qualquer jeito.
Por exemplo, essa história que estou contando. Você provavelmente só quer saber onde eu quero chegar. Que interessa saber se minha chefe é uma mulher alta, magra, se anda curvada e tem longos cabelos ruivos que não ficam brancos nunca, apesar de ela já ter certa idade, e se, com as roupas que usa, parece uma personagem saída de um livro sobre elfos, duendes e dragões? Você vai chamar ela para sair? Não. Ela é só um detalhe que será
esquecido assim que você terminar a leitura. Então, para que saturar a paciência de quem lê?
De qualquer forma, o problema maior não é esse. Segundo esses hipócritas que fingem que uma descrição de um crepúsculo tão longa que acompanha o tempo de um crepúsculo real é o que se chama de verdadeira arte, o que eu faço é um crime. Não o fato de revelar o final para os frequentadores da biblioteca. Isso não é tão grave assim. Mas o fato de realizar cirurgias nos livros. É como eu chamo o que eu faço e, isso sim, é uma verdadeira arte. Não é como eles dizem, vandalismo, destruição do patrimônio público, essa
baboseira toda. É simplesmente uma edição depois do livro já estar publicado, já estar vivo, por assim dizer, em carne e osso. Ou, neste caso, em folhas e tinta.
Tudo que eu faço é deixá-los menores, mais adequados ao acervo público e às necessidades da vida contemporânea, retirando cirurgicamente – e não arrancando, como me acusam – as páginas desnecessárias. Muita gente nem se dá conta, mas muitas páginas, na verdade dezenas, podem ser retiradas sem o menor prejuízo para o andamento das obras, na maioria dos casos. E, quando isso não é possível, quando há informações importantes em uma página depois de um amontoado de cacarejos travestidos de literatura,
eu passo uma fita corretiva por cima das informações desnecessárias, salvando o tempo do leitor, levando-o a uma experiência mais direta, objetiva. Assim, as pessoas podem ler muito mais em menos tempo.
Mas é claro que não entendem. Veja se alguém reconhece meus esforços, o tempo que perco me dedicando a essas cirurgias, apenas para salvar as mentes vindouras de uma série de pormenores que só existem no livro porque aquele autor tomou café demais ou não conseguia ser escutado pela mãe quando criança. Claro que não.
É por isso que os livros perdem espaço para essas locadoras virtuais de filmes e séries. As editoras reclamam da dificuldade de se manter no mercado, mas importam e imprimem qualquer coisa da lista dos mais lidos do exterior. E ainda dizem que os autores escrevem demais e que cortam boa parte dos textos. Pois estão fazendo isso errado, porque os livros continuam com toneladas de palavras inúteis.
As pessoas querem acontecimentos e emoções em série, como em uma montanha-russa, justamente porque a própria vida é como uma praia com infinitas pequenas ondas de detalhes desinteressantes. Vez ou outra vem uma onda mais impressionante. Então, para ler livros assim, é melhor ficar com a própria vida.
Mas ninguém entende. Não é possível ser pró-ativo nesse país."

"Todas as histórias aqui presentes são ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas ou situações reais é mera coincidência.Todas as histórias aqui presentes são ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas ou situações reais é mera coincidência.

Contos / Literatura Brasileira

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Kelly Midori @kemiroxtvliterario
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Kelly Midori @kemiroxtvliterario
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