"Foi em 1953. Talvez 54, não me lembro bem. De madrugada, quase ao amanhecer, o colega aflito chega ao Hotel Financial, de Belo Horizonte, onde eu morava:
- Massacraram o Dimas. A polícia invadiu a gráfica, saiu com ele e o deixou desacordado, todo arrebentado, numa vala do Arrudas, lá na Lagoinha.
Dimas era Dimas Perrin, redator do "Jornal do Povo", semanário, dirigido por Orlando Bonfim, que a ditadura assassinou em 75, nos porões da tortura. Eu era o editor político.
No dia 24 de agosto de 1954, a multidão, emocionada e enfurecida com o suicídio de Getúlio, ocupou a praça em frente a Faculdade de Direito, em Belo Horizonte, incendiou o Consulado Americano ali ao lado. O DOPS chegou, levou, como no "Casablanca". "os suspeitos de sempre": Roberto Costa, Dimas Perrin, muitos outros, inclusive eu. Roberto e Dimas pegaram um ano. Dimas saiu de lá com um livro exemplar, como pesquisa e análise, sobre a "Inconfidência Mineira".
Esmagado pelas pancadas e moído pela prisão, o pulmão de Dimas soluçou. Foi para o Mar Negro (União Soviética), voltou curado. Saí de Minas, nunca mais o vi. Sabia-o advogado, defendendo os favelados e os operários, seus irmãos de infância e abandono. Em 64, no quartel, tive notícias: cassado. Depois, condenado pela justiça militar, em Juiz de Fora, 1967, a nove anos.
Uma tarde, anos depois, na Avenida Rio Branco, no Rio, lá vem, os cabelos inteiramente brancos, passo lento, corpo batido, mas o olhar luminosamente aberto, como nos velhos tempos, meu querido amigo. Abraços e uma conversa sem fim. Voltara, clandestino, nome falso, endereço falso, vida verdadeira, à atividade gráfica. O mesmo homem, o mesmo sorriso, metade São Francisco de Assis metade Guevara, a mesma incrível e intocada força.
Até que o DOI-CODI fez dele pasta e salame, bife humano, em carne e sangue, para o manjar do Terror. Muitas vezes, em silêncio, como Mário Alves, Luiz Maranhão, Orlando Bonfim, tantos outros, me ouvi mastigando o ódio de sua morte.
Agora, aqui em minhas mãos, como um tição, seu "Depoimento de um Torturado". E de repente me pergunto como é possível um homem guardar tamanha lucidez, tanto amor tão funda generosidade diante de um País e de uma sociedade a quem tudo deu, como no samba, sem nada pedir, e só teve violência e injustiça.
Este livro é o retrato de um turvo tempo, mas também é, Deus seja louvado, de um homem luminoso."
Sebastião Nery
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