spoiler visualizarPaulo 30/12/2022
Começo arrasador, depois a obra perde folêgo
Deparei-me com uma inusitada preguiça antes de iniciar a leitura da obra. Afinal, trata-se de um monumento dividido em 2 livros, com mais de 1200 páginas, e eu vinha de duas leituras densas (“A morte de Virgílio” e “O processo Maurizius”).
Que nada. Bastou ler a primeira parte do Livro Primeiro, intitulada “Uma espécie de introdução”, para que eu sentisse uma espécie de encantamento, um arrebatamento que a literatura não me causava desde que li, há tempos, “Dom Quixote”.
Refleti sobre os motivos para tamanho poder literário e cheguei a algumas hipóteses sobre o impacto que sofri ao ler essa primeira parte. Primeiro, o estilo do autor, com frases curtas e capítulos pequenos e nominados, é o meu favorito, pois faz a leitura render e consegue reter mais minha atenção. Segundo, a angústia e os sentimentos de época que o autor conseguiu transmitir, sentimentos esses comparáveis ao momento atual. Assim como no início do século XX europeu, acredito que vivemos nesses anos 2020 no Brasil com um ininterrupto nó na garganta. Terceiro: há muitas reflexões profundas sobre a condição humana na modernidade, como os excertos que mplos que seguem: “é uma façanha aquele que não consegue fazer nada nos dias de hoje. Paradoxalmente, nossas ações não têm a menor importância no emaranhado das forças. A atualidade caracteriza-se pela incongruência de ideias e sua difusão sem um ponto central. Aquele a quem permitem fazer tudo o que deseja em breve não sabe mais o que desejar. Há uma profunda convicção de desconfiança com relação à própria pessoa e destino. Há também um chatíssimo ímpeto de fanatismo pelo trabalho. Há de se perguntar se o mundo é tão errado que se precise mudá-lo a toda hora”.
Lembrando Freud em “O mal estar na civilização”, o autor reflete que “não se pode negar que a mais intensa inclinação do homem por seus irmãos se baseie na repulsa deles”.
Veja que curioso. Tanto este primeiro livro quanto “A rebelião das massas”, de Ortega Y Gasset, foram lançados em 1930 e ambas dialogam sobre a mediocridade do homem médio que vinha proliferando por toda a Europa. Confira-se:
“Ideias que antes possuíam um magro valor engordavam. Pessoas antigamente ignoradas tornavam-se famosas. O grosseiro se suavizava, o separado se reunia, independentes faziam concessões, o gosto já formado sofria de inseguranças. As fronteiras nítidas se borraram, e uma nova capacidade indescritível de se agrupar produziu novas pessoas e novas concepções. Não eram ruins, certamente não; havia apenas um pouco de ruindade demais misturada ao que era bom, engano demais na verdade, flexibilidade demais nos significados. (...) Não há nenhum pensamento importante que a burrice não saiba usar, ela é móvel para todos os lados e pode vestir todos os trajes da verdade. A verdade, porém, tem apenas um vestido de cada vez, e um só caminho, e está sempre em desvantagem.”
Para o homem sem qualidades, “é o possível contexto que vai determinar o que ele pensa de um assunto. Para ele nada é sólido. Tudo é mutável, parte de um todo, de incontáveis todos, que provavelmente fazem parte de um supertodo, mas que ele absolutamente não conhece”. O sociólogo polônes Zigmuned Bahuman, posteriormente, desenvolveu com profundidade o tema da modernidade líquida, já referido aqui por Musil.
Livro é momento e talvez o meu pessoal tenha se encontrado plenamente com o da personagem Ulrich, um pequeno burguês de 32 anos, solteiro, que vivia na Áustria em 1913, o famigerado “homem sem qualidades”.
Ficamos sabendo que Ulrich tentou ser “um homem importante”, iniciando carreira no Exército, trocada pela Engenharia, para depois dedicar-se à matemática, à qual abandonara após obter doutorado e realizar importantes contribuições à ciência. Ele também teve duas amantes: Leona, uma cantora-prostituta que adorava comer, e Bonadeia, uma promíscua mulher casada, mãe de dois filhos.
Num dia em que leu em algum lugar a expressão “cavalo de corrida genial”, Ulrich deixou de ter esperança e resolveu ser um “homem sem qualidades”, interrompeu pela metade seus trabalhos científicos e decidiu se dedicar à filosofia em um ano sabático. A crítica do autor aos tempos modernos, nesse passo, merece transcrição:
“Mas um cavalo e um campeão de boxe têm vantagem sobre um intelecto, pois sua importância e suas realizações se podem medir diretamente, e se reconhece o melhor entre eles como sendo realmente o melhor; dessa forma, o esporte e a objetividade se adiantaram merecidamente, substituindo os conceitos antiquados de gênio e grandeza humana”.
Além do protagonista, a parte introdutória do livro nos apresenta seu pai, um rico intelectual viúvo de 69 anos, burguês, o qual espera que seu filho possa ascender na sociedade. Dois amigos da juventude de Ulrich também entram em cena: o casal Walter e Clarisse. Ele, um idealizador e eterna promessa de gênio das artes, seja na pintura, na música, na literatura ou na poesia. Acabou arranjando um trabalho como funcionário público numa instituição de artes, com tempo para criar, mas esbarra em eterno bloqueio criativo. Tinha o “talento especial de ser considerado um grande talento” e era um amador em muitas coisas, embora muitos especialistas apostassem em um futuro promissor. Para amenizar seu eterno fracasso, decide culpar a época degenerada da Europa pela sua vida, vitimizando-se. Por outro lado, sua esposa Clarisse é mais pragmática, pé no chão e esforçada. Ela começa a se frustrar com o marido que jamais se realiza. Para ela, gênio é uma questão de vontade.
Paralelamente à trama, o autor narra a história de Moosbrugger, um homem grande, forte, carpinteiro, que vivia à margem da sociedade e que assassinou uma prostituta a facadas. Ao tratar de seu julgamento, o autor tece uma crítica sutil ao sistema de justiça alemão e à desigualdade social que começava a sobressair.
No final da primeira parte, Ulrich recebe uma carta de seu pai, na qual recomenda-o a procurar o conde Stallburg, um “pistolão” que poderia impulsionar sua carreira e fazê-lo ascender social e profissionalmente.
A segunda parte da obra, intitulada “A mesma coisa acontece”, apresenta Diotima, prima distante de Ulrich, anfitriã da “Ação Paralela”, um movimento de intelectuais e personalidades que pretendem encontrar uma ideia genial para guiar um ano austríaco de comemorações patrióticas. O judeu-alemão Arnheim, milionário, também participa do grupo e se apaixona por Diotima.
Várias reuniões são realizadas pela “Ação Paralela”, mas nada se decide. Ulrich rompe com sua amante Bonadeia e quase tem um romance com Gerda. Da mesma forma, quase tem um romance com Clarisse, que briga com seu marido Walter. Diotima quase tem um caso com Arnheim. A situação de Moosburguer segue indefinida.
Ao final, há uma grande manifestação contra a “Ação Paralela”, Arnheim convida Ulrich para trabalhar com ele e o pai de Ulrichi falece. Após 6 meses do ano sabático, Ulrich viaja para cuidar da herança do pai.
Boas reflexões filosóficas, sobre a modernidade, permeiam toda a obra: “No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com seus prazeres; sua visão do mundo, sua esposa, seu caráter, sua profissão e realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa”; “Não há mais um homem inteiro diante de um mundo inteiro, mas uma coisa humana se move num líquido nutritivo generalizado”.
Essa segunda parte é circular, os eventos se repetem sem que os acontecimentos tenham um ápice. Não chega a ser maçante, mas a obra perde fôlego e não mantém o ritmo e a genialidade da primeira parte.
No segundo volume, o autor perde um pouco a mão. Entra em cena a história de Ágata, irmã de Ulrich, que ele reencontra ao tratar da herança do pai. Há um encantamento e deslumbramento mútuos e o autor aborda a questão do incesto. Para mim, o autor não conseguiu manter o nível da primeira e arrebatadora parte.
O romance é incompleto: Mussil morre antes de concluí-lo.
Ainda que o segundo livro não seja tão bom quanto o primeiro, recomendo entusiasticamente a leitura.