José Ricardo 29/12/2016
Quem é o homem sem qualidades?
O Homem sem Qualidades, escrito pelo austríaco Robert Musil (1880-1942), não é apenas um grande livro, mas também um livro grande. Diz-se isto por-que, primeiro, a obra invariavelmente tem figurado entre as mais importantes do Século XX e mesmo da Literatura Universal de todos os tempos; segundo, porque suas edições costumam superar as 1.000 páginas. A edição Clássicos Cultura, por exemplo, conta com 1.240 páginas.
O romance foi escrito e reescrito durante mais de 20 anos por Musil, e ainda assim permaneceu inacabado diante da morte repentina do autor. O enredo traz como protagonista Ulrich, cujo sobrenome não é revelado para preservar a privacidade da família. Ulrich tem 32 anos de idade e já tentou seguir 3 profis-sões – militar, engenheiro e matemático – para se tornar um homem, como ele mesmo diz, extraordinário. Contudo, não obteve sucesso em nenhuma delas. Em razão disso, decide tirar um ano de férias de sua vida a fim de se reencontrar.
A história se desenvolve em Viena, fim do Império Austro-Húngaro, nos anos que antecederam a Primeira Guerra, e traz mais de vinte personagens que, de modo geral, transitam pela alta sociedade.
Ao longo da narrativa, Musil critica com fina ironia o comportamento das pessoas e os valores sociais existentes, o que é feito mediante uma análise filosófico-existencial das personagens. Para tanto a trama contém simultaneamente três eixos temáticos. O primeiro se manifesta com as reflexões de Urlich ao compartilhar com o leitor suas inquietudes, angústias e sentimentos inconfessáveis. O segundo se dá com a chamada Ação Paralela que consiste na comemoração dos 70 anos do reinado do Imperador austríaco José I. Por fim, há o julgamento de Moosbrugger pelo assassinato de uma prostituta.
Antes de avançar, porém, cabe indagar: quem é o homem sem qualidades?
Pois bem. Acredita-se que a resposta a esta pergunta revele a essência da obra. Sucede que a questão pode ser respondida de mais de uma maneira. A primeira e mais simples delas é a de que o homem sem qualidades é o próprio Ulrich, como afirmava um dos personagens. Neste aspecto, seria alguém mediano para as exigências sociais; o homem comum, normal; que não se destaca perante seus semelhantes. Isto, por si só, já denota uma crítica. Afinal, é preciso ter qualidades? Por quê? Para quê?
Todavia, uma análise atenta da obra revela que o homem sem qualidades não é somente Ulrich. O homem sem qualidades representa o ser humano que, não obstante tenha as condições para ser um cidadão de bem, acaba por não alcançar aquilo que, no fundo, pode-se nominar como paz de espírito – ataraxia para os gregos – ou, se preferir, felicidade interior.
O homem sem qualidade é aquele que busca sentido em sua vida, mas não encontra um modelo seguro, satisfatório e suficiente para trilhar seus passos; para se preencher como pessoa. É o ser humano em crise, sem certezas e, sobretudo, sem referenciais com os quais se identifique. Não por acaso, Ulrich, embora contasse com os requisitos para seguir as profissões que tentou, não obteve êxito em quaisquer delas. Dito de outro modo, Ulrich não se ajustou ao modelo social existente, o que o levou a sair à procura de algo que ele nem sabe o que é e tampouco onde pode encontrá-lo.
No âmbito social, este cenário parece se repetir. A ideia de uma Ação Paralela nada mais representa do que uma fuga de si para o externo. Na ausência de algo interno que preencha o sentido de suas vidas, os personagens concentram seus esforços em algo exterior; no caso, um evento social. Ocorre que referida Ação Paralela, na verdade, adveio do fato de no mesmo ano a Alemanha comemorar os 30 anos de subida ao poder de Guilherme II. Portanto, a Ação Paralela não passava de mera demonstração de poder entre as duas nações, em que os personagens buscam provar a si próprios sua superioridade cultural, política e intelectual perante os alemães. Seja como for, esse deslocamento de energias para o que está fora não elimina, nem atenua o vazio existencial dessas pessoas. Pelo contrário, ele permanece ali; latente e incomodando espíritos ocos e fúteis.
O caso do assassino Moosbrugger também é impactante. Moosbrugger, igualmente, não se amolda aos rótulos e classificações existentes para dar uma resposta jurídica adequada ao caso. Ninguém sabe precisar se ele é um criminoso insensível ou alguém com graves problemas mentais. Mesmo assim, Moosbrugger é julgado, enquanto a sociedade dá as costas para o episódio como se fosse um fato isolado e alheio, e não como algo que se manifesta, direta ou indiretamente, em todos os núcleos sociais.
Finalmente, não se pode deixar de mencionar a irreverência de Musil ao apre-sentar o início de uma relação incestuosa entre Ulrich e sua irmã Ágata. Algo como se o autor quisesse dizer que os padrões morais vigentes estão muito distantes para lidar com os conflitos e contradições humanas que a vida lhes apresenta furtivamente.
Em conclusão: O Homem Sem Qualidades mostra como a sociedade costuma esconder a sujeira debaixo do tapete. Seu autor, contudo, não se contenta apenas com isto. Ele localiza esses tapetes e mostra tudo o que está ali embaixo e que muitos se recusam a ver. Mostra, ainda, a emergência de uma sociedade dominada pela técnica e que esta mesma técnica mais afasta do que aproxima o ser humano de si próprio. O Homem sem Qualidades evidencia os limites da razão para lidar com os sentimentos mais íntimos que permeiam o ser humano.
FRAGMENTOS
“As pessoas empregam palavras para esconder seus pensamentos e utilizam pensamentos para fundamentar seus erros.”
“No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são”.
“Se naquele tempo fazíamos afirmações, tinham outro objetivo além de serem corretas: simplesmente o de nos afirmarmos!”
“Hoje em dia, muitíssimas pessoas se sentem numa lamentável posição em relação a muitíssimas outras. É um traço fundamental de nossa cultura o homem desconfiar profundamente das pessoas fora de seu próprio meio; portanto, não só um ariano considera um judeu um ser incompreensível e inferior, mas um jogador de futebol sente o mesmo diante de um pianista.”
“foi a matemática que arruinou a alma, que a matemática é a fonte de uma inteligência perversa que faz o homem senhor da terra, mas escravo da máquina.”
“Ulrich ainda descobriu que também na ciência parecia um homem que escalou uma montanha após outra sem avistar seu objetivo.”
“Poder renunciar a algo que nos faz mal é prova de força vital.”
“É difícil imaginar as dores que nunca sentimos.”
“Convicção, a relação congelada e imutável. Pesquisa, igual a fixar. Caráter, igual a preguiça de se transformar. Conhecimento de uma pessoa, o mesmo que não se comover com ela. Compreensão, um ponto de vista. Verdade, a tentativa bem-sucedida de pensar de modo objetivo e desumano. Em todas essas relações há morte, gelo, ânsia de posse, e imobilidade, e uma mistura de egoísmo com um altruísmo objetivo, covarde, traiçoeiro, ilegítimo.”
“A pessoas precisam de modelos que lhes representem o mistério da liberdade”.
“Em nossa vida real, quero dizer a vida pessoal, e em nossa vida pública e histórica, sempre acontecem coisas que não têm razão suficiente.”
Sobre a solução jurídica dada ao caso Moosbrugger: “ou a pessoa age conforme a lei ou não age, pois entre dois opostos não há terceiro ou meio-termo.”
“A razão não basta; as coisas decisivas concretizam-se num nível superior a ela.”
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