Gininha 09/04/2010
O Homem sem Qualidades
No início, pensei tratar-se de um registro romanceado da decadência do império austro-húngaro, mas logo se percebe tratar-se de um estilo literário denso, transcendendo uma mera narrativa, até mesmo um romance, diria mesmo que a esse livro não cabe rótulos. A ação se passa na Áustria, é verdade, há um personagem principal, Ulrich, e isso é pretexto para Musil expor suas impressões sobre as coisas, pessoas, mundo. Já na expressão “homem sem qualidade”, uma dubiedade terminológica: Não se trata de traçar perfis de um homem destituído de valores morais; “qualidade”, aqui, significa antes propriedade, particularidade, adjetivo, característica, talvez. Um conceito que faz lembrar um texto de Aristóteles. Em sua metafísica, o filósofo grego fala de um mundo constituído de substâncias, que ele chama “formas” (“forma é substância”). O que existe são formas, substâncias, sendo a ideia posterior à forma. É com a ideia que se dá nome às formas, às substâncias, mas estas existem por si, independentemente do que se possa pensar delas. Pensando-se nas formas, logo surgem as propriedades das substâncias, de sorte que tais propriedades são, já, um conceito de valor (isto é grande, aquilo é pequeno; isto alto, aquilo é baixo; isto é largo, aquilo é estreito...). E, também, há os valores puramente estéticos: isto é belo, aquilo não é belo; isso é gostoso, aquilo não é etc. Por exemplo: Analise-se o conceito de “frieza” de um ser humano – Um assassino perpetrou o crime com absoluta frieza de espírito; nesse caso, “frieza” tem conotação negativa, abominável mesmo. Contudo, espera-se uma frieza de espírito por parte de um cirurgião, ao realizar uma cirurgia, o corte, a extração de um tecido doente deve ser realizada com fria perícia, para que a operação seja bem sucedida; frieza, nesse caso, é um atributo louvável. Pois bem, Musil pensa num homem, num ente sem o obstáculo da ideia, um homem sem qualidade, uma substância. Mas também pode-se dizer que o livro é um romance, pois narra as vivências experimentadas pelo personagem Ulrich, no contexto que antecede à I Guerra Mundial. Depois de muito viajar pelo mundo, Ulrich retorna à Viena, convive nas altas rodas de Viena e, aí, surgem personagens cônscios de um poder com enorme influência no mundo das economias, das políticas, porém um poder que começa a escapar daquilo que um dia constituiu o grande Império Austro-Húngaro. Esses personagens, caquéticas figuras em declínio, face a novas forças mundiais que reivindicam um novo status na ordem das coisas, aparecem, com seus conceitos rigidamente estabelecidos, suas ilusões de poder e que Musil retrata com aguda ironia. Todos esses personagens, todos os fatos narrados, o desenrolar da história, mais parecem pano de fundo para as reflexões que Musil desenvolve sobre a ética, a estética, a psicologia humana, os sentimentos – não importa se nobres ou vís -, tratando-os todos como formas-pensamentos, e não como “qualidades”, “atributos” bons ou maus. O Homem sem Qualidade, se rotulado como romance, é, antes, um romance filosófico, um ensaio da natureza humana, cru, sem concessões, mas nem por isso destituído de fina e requintadíssima sensibilidade, talvez de desencanto. Interessante é como “o olhar pela janela” é um recurso recorrente em outros livros de Musil (O Jovem Törless, por exemplo) e, nesse sentido, uma imagem, neste O Homem sem Qualidade, ficou como que fotografada indelevelmente na minha memória: Ulrich, encostado numa grande janela de vidro, deixa-se passar horas absorto, olhando a rua lá fora, o tempo cinzento e gelado, a neve caindo, vultos com grossas capas escuras passando... Dou cinco estrelas a essa instigante construção literária e reconheço não ser um texto assim, tão fácil de se ler.