Che 20/06/2017
O DIA DO CAÇADOR
Pra mim foi uma surpresa descobrir que conseguiram fazer um arco realmente adulto e sóbrio do personagem mais popular da Marvel no século XX (agora, com os filmes recentes do Capitão e Homem de Ferro, deu uma equilibrada). Sempre achei Peter Parker um sujeito que estacionou mentalmente na adolescência, abobalhadão, sempre vítima de necessidades e aspirações relacionadas a aprovação social e etc. Os filmes do cabeça de teia parecem versões de "Malhação" anabolizadas com efeitos visuais em CGI, tamanha a circulação de traminhas adolescentes.
Em "Última Caçada", porém, conseguiram deixá-lo mais maduro, sendo um sujeito preocupado com o casamento recente com Mary Jane (também discreta e ponderada). Aliás, Parker sequer é o protagonista da história, passando os capítulos dois e três (do total de seis) simplesmente fora da narrativa. Ainda assim, quando aparece, é num tom lúcido, perturbado pela morte de pessoas próximas a ele e desejando aproveitar a presença de quem ainda está vivo, em particular a esposa.
Quem é dono do arco, sem dúvidas, é o antagonista Kraven, bastante denso e até comovente. Mais uma vez, é de se lamentar como a Marvel nunca acerta um só vilão nos cinemas, mesmo tendo material pra isso nas fontes em quadrinhos. Trata-se de um sujeito descendente da aristocracia russa "que foi expulsa pelos Lênins e Trotskis mundanos", obcecado pela ideia de ter sangue azul e honra para provar - nem que seja só a si mesmo. Os realizadores não tem medo de ir a fundo no desenrolar dramático de Kraven e mostrar que a chance dele obter o que quer é grande, conseguindo tirar o Aranha de jogo logo de cara e avançando a largas passadas em seu propósito de provar que não só é melhor que Parker como vilão, mas também como... herói!
Tudo isso é escrito por um roteiro de fina estampa de John Marc DeMatteis, fã confesso de Dostoievski, que capricha na narração off do vilão - chego ao ponto de dizer que ele é que é o protagonista e o Aranha é o antagonista. Esse julgamento que o leitor pode fazer do russo é ainda mais conturbado quando entra na história Rattus, um serial killer canibal habitante dos esgotos, que ao mesmo tempo em que teme o Aranha, tradicionalmente tem se mostrado um vilão fisicamente mais forte que ele. O final, quando os três personagens se reúnem - com consequências trágicas e irreversíveis para um deles - é ótimo e fecha com chave de ouro a narrativa.
DeMatteis várias vezes parte para um roteiro minimalista e repete algumas falas confiando no poder que a parte visual terá. Ou seja, todo esse esforço poderia ir ladeira abaixo se não fosse a competência do desenhista Mike Zeck, que rouba a cena e se sai ainda melhor que o roteiro, nos trazendo para uma cidade inóspita, eternamente chuvosa e de tempo fechado, umedecida pela chuva ou pelo esgoto. Há vários momentos sem diálogo com três ou quatro quadros passando uma noção de movimento exato, digno de 'storyboard' de cinema (aliás, como esse arco ainda não virou filme?). O uniforme preto do Aranha também é de ótimo impacto visual e cai como uma luva para o teor adulto e sombrio do enredo.
Quem diria que o cabeça de teia renderia uma história dessas, hein?! Mas é verdade, mesmo sendo um personagem que não curto muito, embora também não chegue a me causar repulsa como um Tony Stark. Tem lá alguns defeitos mínimos (poderiam simplesmente ter nos poupado daquela vestimenta digna de escola de samba na Sapucaí do Kraven), mas são plenamente diluídos no todo positivo, memorável e antológico. Recomendável até pra quem, como eu, não tem grande interesse no aracnídeo da Marvel.