Higor 11/07/2020
'Lendo Nobel': sobre uma guerra camuflada
O mundo pós-guerra é contado de maneira apressada nas escolas e livros de história, em partes por dois motivos: 01. A concretização do capitalismo no mundo e o consequente poderio dos EUA, que tratam eventos sangrentos e catastróficos, como a Guerra do Vietnã, por exemplo, como apenas uma “Campanha Anticomunista”; 02. A história do Brasil para brasileiros, desde que se tornou independente e passou a caminhar com as próprias pernas.
Se por um lado é compreensível que tantos acontecimentos do final do século XX sejam retratados de maneira rasa por conta do curto espaço de tempo, chega a causar desconforto o distanciamento e negligência com que temos diante de tantos eventos históricos, que causaram milhares de mortes e nos parecem, ao longo da vida, indiferentes.
Guerra do Vietnã, Descolonização da África e da Ásia, o fim dos impérios, independência das colônias no Velho Mundo, Conflito Árabe-Israelense, Revolução Latino-americana, Guerra do Afeganistão, Guerra de Kosovo... São tantos os eventos que sequer são conhecidos e estudados, que o pensamento que fica é o de o ensinamento de História precisa ser reavaliado, com sua didática e linha do tempo para estudo, pois muita coisa está sendo esquecida ou ignorada.
Essa introdução serve apenas para se ter uma ideia de que eu sequer sabia da existência da Guerra do Afeganistão em 1979, e que se trata, na verdade, da Primeira Guerra (a segunda ainda ocorre até os dias de hoje, comandada pelos EUA, como uma resposta aos Ataques de 11 de setembro, no intitulado Combate ao Terrorismo).
Tal Primeira Guerra foi um dos mais eventos na Guerra Fria que, somados, potencializaram o colapso da União Soviética. Outro exemplo é o Acidente Nuclear de Chernobyl, amplamente desastroso, mas ignorado, que prefere focar em eventos não sanguinários, como a corrida espacial.
Svetlana Aleksiévitch, então, assim como em seus livros pontuais sobre eventos históricos em que a URSS teve algum envolvimento, em “Meninos de Zinco” nos dá uma amostra do que foi a Guerra, e como se sucedeu, já que nós, sem tal livro, sequer teríamos ideia de que tal evento acontecera.
Ironicamente, este “Meninos de Zinco” se tornou o mais doloroso, pois os relatos abordados não são, propriamente, que pessoas que voltaram da guerra, mas principalmente de mães, embora também de esposas, que perderam seus meninos. Os tais meninos do título, voltavam para casa dentro de caixões feitos de zinco.
A Guerra do Afeganistão, inicialmente civil, para posteriormente ter a ajuda da URSS, para depois ter a aparição dos EUA, levando a Guerra para níveis maiores, que corrida por demarcação de território político, assim como aconteceu no Vietnã, foi um evento ignorado até mesmo pelos próprios soviéticos. Muitos, em seus relatos, confessaram não saber que tal guerra existia, e que a URSS estava ajudando os afegãos, e quando os caixões começaram a aparecer, os mortos eram condecorados, homenageados, e os eventos sangrentos eram camuflados, pincelados, apresentados como algo esporádico.
O desconforto é o de justamente a Guerra ter parecido algo brando, quando, na verdade, 15000 mortos foram contabilizados. E a dor das mães ao se deparar com os filhos enganados, servindo uma nação que os enganara, e chorando nos ombros de pessoas que não sabiam que isso estava acontecendo.
Além dos próprios relatos de Guerra, temos dois pontos importantes para a produção do livro: a mesma esteve no Afeganistão, em Cabul, como jornalista, onde teria que narrar os eventos, o que fazia contra a vontade, pois sofrera muito ao escrever “A guerra não tem rosto de mulher” e “As últimas testemunhas” e não queria mais falar sobre guerra.
Além disso, no final, há todo o desenrolar de um processo judicial que a mesma sofreu com a escrita deste livro específico, onde pessoas a acusaram de ser antipatriótica e de deturpar suas palavras, dando a entender que culpavam a URSS pelo que acontecera a seus entes.
Uma aula de história, graças ao Nobel, pois é certo que, caso não tivesse sido laureada, nenhum livro de Svetlana teria sido publicado no Brasil, “Meninos de Zinco” ensina o que não sabíamos, situa-nos no tempo e ainda nos ajuda a montar o quebra-cabeças de como cada cidade e país se desenvolveu ao longo dos anos para, hoje, século XXI, ser o que nós conhecemos.
Este livro faz parte do projeto 'Lendo Nobel'. Mais em:
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