cacai 04/06/2018
“Tudo o que você não soube”, de Fernanda Young, é um livro difícil de ser lido. Quem já teve seus atritos familiares – independente das dimensões –, na adolescência ou em qualquer outra etapa da vida, se sentirá tocado, assim como os que se sensibilizam pelos dramas alheios. Com o perdão do trocadilho, a leitura é uma martelada no peito cuja dor ecoará de maneira diferente em cada um. É, acima de tudo, um livro sobre relações familiares, com uma escrita muito fluida, apesar de densa e dolorosa - inclusive não creio ser uma leitura recomendada para quem possa estar passando por momentos delicados.
"Meu fígado se revira, em busca de desopilar a química desse remédio, que é desabafar em verbo, e meu estômago arde e regurgita, porque palavras como as que sou obrigada a usar são indigestas até para frias miseráveis desgraçadas, como eu."
A narradora, da qual não sabemos o nome, está escrevendo um livro para o pai à beira da morte. Sua intenção é revelar tudo o que ele não soube em relatos permeados por um ódio e uma mágoa gigantescos.
“E eu faço questão de que você vá para o inferno sabendo como foi paga a sua passagem.”
O texto mescla acontecimentos passados e presentes. A cada parágrafo vamos conhecendo um pouco mais da verdadeira história e tentando entender o que a levou a dar os passos que deu, incluindo as atrocidades das quais foi capaz. A narrativa segue um fluxo de consciência com muita associação livre, assemelhando-se quase a uma sessão de terapia. A própria narradora reconhece que se tivesse feito análise poderia ter evitado a escrita do livro.
"Por essas e por outras que nunca fiz análise. Imagino um cara tentando decifrar meus eventuais silêncios, dizendo-me que sou como areia, que escorre entre os dedos ao fecharmos a mão. Areia é a puta que o pariu. Posso ser tudo, menos areia. Por acaso, areia se transforma? Areia melhora como pessoa? Não. E eu me transformo, eu melhoro como pessoa."
Em muitas resenhas alguns leitores revelam ter sentido muito ódio da narradora. Meus sentimentos foram dúbios, difíceis de serem classificados - alternando entre pena e repulsa. Como uma das passagens diz, todos são vítimas e algozes na mesma medida.
"Eu acho que todo mundo tem razão. Esse é o ponto que torna a discussão infundada. Não a de vocês, todas."
Se o leitor tentar colocar-se no lugar da narradora - mesmo sabendo tratar-se de uma peça ficcional o exercício é válido - poderá compreender o peso da falta de suporte para lidar com as cobranças na juventude. Do pouco que sabemos do histórico dos pais - incluindo a perda de uma filha - também podemos avançar alguns passos no entendimento de o porquê seguir determinado modelo de criação.
"Mas não eliminarei os conflitos; são inerentes à minha personalidade. Se eu te escrevesse uma receita de bolo, viria toda conflituosa em seus ingredientes. Aliás, esta é a chave da boa narrativa. Por que Shakespeare sempre será o melhor de todos os tempos? Porque sacou, antes de qualquer um, e mais do que ninguém, a fagulha primordial. Sem conflito, não há nada que interesse."
Talvez o que toque tanto no livro é a certeza de que pais sempre erram, por maiores que sejam seus esforços de acertar. Sentir raiva deles por isso pode até ser um sentimento comum a muitos filhos, mas basta umas sessões de análise e doses de maturidade (que só o passar dos anos trazem) para entender que as razões ocultas que movem comportamentos poderiam muitas vezes serem perdoadas. E ao fazer essa reflexão, não há como não lembrar de Legião Urbana: "Você me diz que seus pais não te entendem/Mas você não entende seus pais/Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo/São crianças como você."