Estêvão 19/11/2020Estabelecendo o claro intertexto com A metamorfose, de Kafka, já na primeira frase, em A barata, Ian McEwan inverte a transformação kafkiana para satirizar o absurdo em que vivemos, com o crescimento da extrema-direita e, no caso da Inglaterra, a saída da União Europeia, através do Brexit. .
Nesse conto, de imediato notamos uma diferença em relação à obra de Kafka: aqui, é uma barata que se torna humano, um dos líderes da Inglaterra, o primeiro-ministro britânico. Com o poder nas mãos de uma barata, o que está por vir é uma série de desastres políticos e econômicos, e o autor até cria uma corrente econômica para ampliar a verossimilhança de tudo, o Reversalismo. .
Segundo essa corrente, a economia passaria a funcionar de forma contrária, com as pessoas pagando para trabalhar e comprando para receber. A única ressalva é que tudo o que recebesse em dinheiro deveria ser pago trabalhando: uma ideia estapafúrdia como algumas que circulam na realidade. .
Além desse diálogo mais evidente com Kafka, há também a presença da atmosfera de pesadelo/absurdo, devido às ideias que começam a avançar entre as lideranças políticas inglesas e de outras partes do mundo. Isso porque, outras baratas também tomam a forma humana e assumem o poder em outros locais, em especial nos Estados Unidos. Tudo isso representa o crescimento da extrema-direita em todo o mundo, como explica no posfácio da obra. .
Há no conto um humor ácido, que, ao mesmo tempo que diverte, incomoda, pois as referências com a realidade são perceptíveis, em especial os dialógos entre o primeiro-ministros e o presidente dos EUA, com menção a como usar as redes sociais e mobiliar . .
Em tempo desastrosos, A barata não apenas retrata de forma alegórica isso, mas o faz de forma inteligente, em um constante diálogo com o universo de Kafka, talvez o único que consiga nos explicar algo. Vale destacar também a sacada do autor em refletir sobre isso através da literatura enquanto tudo isso está em andamento, algo que não se vê muito nas produções atuais – na verdade, não me vem nenhuma obra que tenha feito isso. .
Há também um diálogo com as sátiras políticas de Jonathan Swift, mais vinculadas aos clássicos da literatura inglesa, que não conheço, mas que, junto com Kafka, alimentam a sátira de McEwan. .
Portanto, A barata é um conto que veio em momento oportuno, ajudando a entender um pouco tudo isso que estamos vivenciando, divertindo em tempos sombrios e nos dando um exemplo de como a literatura ultrapassa as fronteiras das palavras.
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