Victor Dantas 10/02/2021
A solidão do homem gay e o direito de existir. #38
Escrito entre 1913-1914, e publicado postumamente em 1971, “Maurice”, obra do escritor inglês E.M. Forster (1879-1970), é um dos romances precursores da literatura ocidental no que diz respeito ao tema da homossexualidade.
O nosso protagonista, Maurice, vive na Inglaterra em meados do século XX, em uma sociedade que estava no auge da expansão econômica, e concomitante engessada em valores liberais, puritanos e patriarcais.
Tais valores fizeram parte da criação do Maurice, infância e adolescência, onde frequentou escolas preparatórias dominicais e internatos masculinos.
Uma grande mudança ocorre na vida Maurice quando ele ingressa em Cambridge. Confronto consigo mesmo. Confronto com suas crenças. Desejos.
Em Cambridge, Maurice conhece Clive Durham e logo se tornam amigos. Mas, ao passo que se tornam íntimos e confidentes, o sentimento de amizade vai dando lugar a um sentimento de amor, desejo, paixão.
A relação dos dois vai se fortalecendo aos poucos, e durante esse processo tanto Maurice quanto Clive começam a identificar seus desejos e buscam a compreender a natureza destes.
Para Maurice, o que ele sente por Clive é manifestado naturalmente, faz parte do que ele é. Já para Clive o que ele sente por Maurice é uma fase, uma paixão específica, em um momento específico.
A relação dos dois dura alguns anos até que o rompimento acontece por parte do Clive que acredita que sua paixão pelo Maurice se dissipou, e restou apenas o sentimento de carinho e parceria. Amizade. Isso se deve ao fato de Clive ter conhecido uma mulher, na qual, ele acredita que finalmente o amor verdadeiro se revelou. O amor heterossexual.
A reação do Maurice diante da situação é totalmente passiva, ele se submete a permanecer na vida do Clive apenas como amigo, mesmo sabendo que o ama. Além disso, passa acreditar que assim como o Clive se “encontrou”, ele também pode se encontrar.
Sendo assim, Maurice decide iniciar uma jornada em busca da “cura gay”. Procura ajuda médica, hipnose, e alternativas que conduzam ele para a vida ideal feliz que seu amigo Clive alcançou.
Ele acredita que seus desejos e sentimentos são escolhas racionais, portanto, ele pode mudá-los, corrigi-los.
Mas será mesmo que seus desejos e sentimentos são escolhas racionais?
Quais serão as consequências disso?
IMPRESSÕES PESSOAIS
O romance Maurice é simbólico e representativo para a comunidade gay em vários aspectos. Consegue expressar a realidade gay até hoje.
Os principais temas que a obra aborda são:
1) DESEJO e SENTIMENTOS
É fato, é indiscutível, que o ser humano é feito de desejos e sentimentos, principalmente no campo afetivo e sexual. No entanto, quando isso é associado a uma sexualidade não-padrão, no caso, a homossexualidade, tudo muda.
Para o homem gay, desejar e sentir está direta ou indiretamente ligado com à vergonha, à desaprovação, ao medo, à perseguição, à violência... à morte.
A nossa experiência de vida enquanto homens gays é totalmente influenciada por esses processos de apagamento e negação quanto a nossa sexualidade, e principalmente, quanto aos nossos desejos e sentimentos.
Somos obrigados a acreditar que nossos desejos e sentimentos são impuros, vergonhosos, anormais, portanto, sufocamos, reprimimos e anulamos os nossos desejos e sentimentos em diversos contextos para que a nossa existência seja garantida.
Na obra tanto Maurice, quanto Clive convivem com essas angústias diariamente.
“Não se enganava, apesar das rédeas que mantinha sobre a carnalidade. Podia controlar o corpo, mas era sua alma maculada que zombava de suas preces” (pg. 78).
2) A SOLIDÃO DO HOMEM GAY
Uma vez eu assisti uma palestra no TED x Talks de um pesquisador e ativista gay inglês, e em um determinado momento ele falou “Todas as crianças gays nascem em ilhas”. Nunca vi tanta verdade em uma frase.
Independente se a nossa família acolha ou não a nossa sexualidade, a solidão será sempre parte da nossa existência enquanto homens gays.
Desde o nosso nascimento até nossa vida adulta, estamos sempre em busca de aprovação. Quando somos gays, isso se intensifica, pois além da busca pela aprovação, buscamos também o pertencimento, e esse pertencimento nunca está fora do meio gay.
Basta olharmos a nossa volta.
Existem bares gays e bares de héteros, existem baladas de gays e baladas de héteros, existem bairros gays e bairros de héteros, e isso se desdobra em tantos outros campos.
Guetos.
A solidão generalizada que nós experienciamos, faz com que a gente sempre busque referências e contextos gays para nos sentirmos minimamente acolhido.
Em “Maurice”, vemos a condição de um homem gay solitário, e que infelizmente na época em que se passa a história, referências e contextos gays eram inexistentes. Maurice é obrigado a lidar consigo sem nenhum apoio de semelhantes.
“Não tinha um Deus, não tinha um amor – os dois incentivos habituais à virtude. Mas lutava dando as costas para o conforto, pois a dignidade assim o exigia” (pg. 149).
3) O DIREITO de EXISTIR
Há uma diferença significativa entre viver e sobreviver. Na maioria das vezes, nós homens gays não vivemos, nós sobrevivemos. E para sobreviver nós temos que renunciar a nossa identidade, renunciar a nossos desejos, sentimentos, renunciar o eu por contra do outro.
Perdas.
“Dedicado a um ano mais feliz” essa é a frase que o E.M. Forster insere na dedicatória do livro. Com essa citação o autor defende se posiciona em defesa da existência do homem gay, da vivência do homem gay, e sobretudo, da felicidade do homem gay.
Forster acreditava que poderia sim, no meio de tanto ódio, violência, intolerância, existir a possibilidade de um homem gay viver, sentir e experienciar o amor, o afeto, a felicidade.
E talvez seja por esse motivo, que “Maurice” seja uma obra simbólica e representativa para nossa comunidade gay, pois, diferente de outras histórias sobre a homossexualidade que foram escritas no século XX, em “Maurice” o nosso protagonista consegue resistir e enfrentar os obstáculos, e o desfecho não de sua história não é uma tragédia.
É um futuro feliz. Paz.
Maurice não precisa mais sobreviver. Maurice agora vive. Existe.
A escrita do E.M. Forster é singela, a forma como ele apresenta as cenas e os diálogos para o leitor, bem como a descrição dos personagens é muito visual.
O livro é narrado em 3ª pessoa, mas isso não interfere na nossa conexão com os personagens, pelo contrário, conseguimos absorver o enredo com mais precisão, em razão da narrativa circular que o autor utiliza no texto.
Além disso, o autor consegue fazer com que o leitor identifique os sentimentos do Maurice mesmo a história sendo contada em 3ª pessoa, e isso torna a história mais cativante.
Por fim, é uma obra ímpar e muito relevante para o movimento LGBT na literatura, e que para nós leitores lgbt, é uma obra que vai tocar em pontos muito específicos de nossa vivência.
E caso você não for um leitor lgbt, “Maurice” consegue aproximá-lo dessa realidade.
A edição conta com um prefácio belíssimo de Ronald Polito e nota final do próprio autor.
Deixo meu apelo às editoras brasileiras para que publiquem mais obras de E.M. Forster.
Boa leitura.