Anderson.Fernandes 29/01/2021
República já começou mal
Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi
José Murilo de Carvalho
É um livro bem interessante, eu diria que seria algo como um livro técnico de história. Tem que ler com calma e atenção. Tem partes que são excertos de jornais da época e estes possuem arcadismos que não conhecemos mais, sendo necessário busca em dicionário. Voltando ao tema do livro, ele aborda como era a sociedade civil carioca nos primeiros anos pós proclamação da República. Em síntese estas eram as principais características:
• O povão assistiu a proclamação da República Bestializado (surpreso).
• O povão não via na instituição da República algo acessível, não se interessava por assuntos políticos e queria levar a sua vida, trabalhar e ser incomodado o mínimo possível pelo Estado.
Haviam muitos defensores da República e que em suas colunas nos jornais defendiam que o povo queria participar mais das decisões políticas, que com a República o povo teria acesso à cidadania, e que com a República o povo iria governar - típica baboseira que vemos hoje em dia, onde jornalistas, influencers e famosos defendem idéias totalmente descoordenadas da realidade. A massa trabalhadora não estava nem aí para isso. Eles se associavam e participavam das festas religiosas, do carnaval, de entidades étnicas e comunidades de trabalhadores.
A massa de trabalhadores tinha mais conexão com a monarquia, com uma visão onde o monarca era o seu patriarca. Com a República era algo abstrato, que não se entendia, ou não se dava a mínima.
Através de passagens de jornais o livro mostra que a República no Brasil era uma espécie de cópia malfeita da Europa. Isto porque não houve no Brasil um crescimento de idéias e estudos de pensamento republicano, tampouco um absorção do público sobre o que era uma república, suas características, estruturas de participação na política, etc etc. Os apoiadores queriam uma república basicamente porque aquilo estava na moda. O cidadão brasileiro, súdito do imperador, não sabia nem queria saber o que era república. Tanto é que após o golpe da república, evidenciou-se isto pela falta de participação política. Não saíam para votar, não formavam partidos, não iam a reuniões de entidades políticas. Povo era indiferente. Muitos partidos políticos eram formados, duravam algum tempo e se extinguiam.
Livro também cita passagens de jornais falando de quão perigoso era votar. Tinha pancadarias e agressões. Candidatos contratavam jagunços e capoeiras para intimidar as pessoas e bater em oponentes (oponentes leia-se qualquer cidadão que não vote nele e/ou olhar atravessado para o mesmo). De modo que o cidadão que queria paz nem saía de casa nos dias de eleição.
O maior capítulo do livro é sobre a famosa Revolta da Vacina. Traz dados de censo, quantas pessoas foram feridas, mortos, dados jornalísticos sobre quebra-quebra. Aliás o livro diz que a forma que o povo tinha de se relacionar com o governo era um modo reativo. Quando a República/Governo fazia algo que o contrariasse muito, ocorriam quebra-quebra. Postes, bondes, paralelepípedos. Se fosse pouca coisa, não dava nada, o povo é manso. A vacina foi um pouco disso. Povo não queria o governo se intrometendo em suas casas, aplicando vacinas nas donas do lar sem o marido estar em casa, somado ao fato de já ter um estresse acumulado devido a muitos despejos e desmontes de cortiços, destruição de moradias sujas e insalubres, promovido pelo prefeito Pereira Passos. Aliás, prefeito que fez um longo trabalho de construções públicas seguindo e inspirado pela arquitetura Haussmann parisiense. A dupla Pereira Passos e Osvaldo Cruz, este último na área da saúde, fizeram trabalhos bons e positivos na melhoria da saúde da população carioca. Além dessa questão intrusiva que incomodava o povo, os militares queriam dar um golpe no governo e atiçavam multidões e formaram grupinhos(hoje em dia isto é chamado de coalizões) para tentar aplicar um golpe no governo. Teve combates entre militares pró e militares contra governo, deserções de militares revoltosos e governo chamou Marinha e Exército para combater os rebeldes. No final muitos foram banidos para o Acre e a população se acalmou. Esses banimentos eram sumários, sem julgamento nem nada. Manda pro Acre e acabou-se. Entre os banidos, destaque para o marginal Prata Preta. Conhecido capoeira perigoso na cidade, matou policiais e à muito custo foi preso e metido em camisa de força. Mesmo em camisa de força continuou xingando os policiais e querendo briga. Foi banido para o Acre. No navio brigou e porrou os outros presos de modo que se tornou chefe dos outros banidos. Cara brabo!
Segue abaixo alguns trechos que destaquei no livro:
[...]
“Pouco antes da república, o embaixador Português anotava: “Está a cidade do Rio de Janeiro cheia de gatunos e malfeitores de todas as espécies”. Em proposta para regulamentação do serviço doméstico, feita à Intendência Municipal em 1892, Evaristo de Moraes observava que havia na capital “gente desocupada em grande quantidade, sendo notável o número de menores abandonados”.
Essa população poderia ser comparada às classes perigosas ou potencialmente perigosas de que se falava na primeira metade do século XIX. Eram ladrões, prostitutas, malandros, desertores do Exército, da Marinha e dos navios estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de repartições públicas, ratoeiros, recebedores de bondes, engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores, receptadores, pivetes(a palavra já existia). E, é claro, a figura tipicamente carioca do capoeira, cuja fama já se espalhara por todo o país e cujo número foi calculado em torno de 20 mil às vésperas da República. Morando, agindo e trabalhando, na maior parte, nas ruas centrais da Cidade Velha, tais pessoas eram as que mais compareciam nas estatísticas criminais da época, especialmente as referentes à contravenções do tipo desordem, vadiagem, embriaguez, jogo. Em 1890, essas contravenções eram responsáveis por 60% das prisões de pessoas recolhidas à Casa de Detenção.”
[...]
“Os velhos problemas de abastecimento de água, de saneamento e de higiene viram-se agravados de maneira dramática no início da República com o mais violento surto de epidemias da história da cidade. O ano de 1891 foi particularmente trágico, pois nele coincidiram epidemias de varíola e febre amarela, que vieram juntar-se às tradicionais matadoras, a malária e a tuberculose. [...] A cidade tornara-se, sobretudo no verão, um lugar perigoso para viver, tanto para nacionais quanto para estrangeiros. Nos meses de maior calor, o corpo diplomático fugia em bloco para Petrópolis a fim de escapar às epidemias, nem sempre com êxito. O governo inglês concedia a seus diplomatas um adicional de insalubridade pelo risco que corriam representando Sua Majestade.”
[...]
“Pelo lado econômico,[...] grandes agitações. [...] origem de tudo remontava à abolição da escravidão. [...] devido à necessidade de aplacar os cafeicultores, o governo imperial começou a emitir dinheiro, no que foi seguido com entusiasmo pelo governo provisório, este preocupado em conquistar simpatias para o novo regime. Concedido o direito de emitir a vários bancos, a praça do Rio de Janeiro foi inundada de dinheiro sem nenhum lastro, seguindo-se a conhecida febre especulativa, bem descrita no romance de Taunay, o Encilhamento. [...] As consequências não se fizeram esperar. Desde logo, houve enorme encarecimento dos produtos importados [...] A seguir, a inflação generalizada e a duplicação dos preços já em 1892. AO mesmo tempo, começou a queda do câmbio, encarecendo mais ainda os produtos de importação, que na época abrangiam quase tudo. Em 1892 já era necessário o dobro de mil réis para comprar uma libra esterlina; em 1897, o triplo. Por cima, o governo aumento os impostos de importação e passou a cobrá-los em ouro, o que contribuiu ainda mais para o agravamento do custo de vida. [...] Até o embaixador inglês sofreu as consequências [...] encaminhou pedido ao Foreign Office [...] até quando podemos esperar que o povo brasileiro aceite carregar tal peso?”
[...]
“Os militares tinham provado o poder que desde o início da Regência lhes fugira das mãos. Daí em diante julgaram-se donos e salvadores da República, com o direito de intervir assim que lhes parecesse conveniente. Rebelavam-se em quartéis, regimentos, fortalezas, navios, A Escola Militar, a esquadra nacional em peso. Generais brigavam entre si, ou com almirantes, o Exército brigava com a Armada, a polícia brigava com o Exército. Por seis meses, a esquadra rebelada bloqueou o porto e bombardeou partes da cidade, causando pânico, deslocamentos maciços de população para os subúrbios, ameaças de saques. Os operários, ou parte deles, acreditaram nas promessas do novo regime, tentaram organizar-se em partidos, promoveram greves, seja por motivos políticos, seja em defesa de seu poder aquisitivo erodido pela inflação. [...] Pequenos proprietários, empregados, funcionários públicos também se mobilizaram pela primeira vez no bojo da xenofobia florianista, organizando clubes jacobinos e batalhões patrióticos. [...] Quebravam jornais, promoviam arruaças, [...] espancavam e matavam portugueses, perseguiam monarquistas, assassinavam inimigos. Em 1897 tentaram matar o presidente da República, depois de terem feito o mesmo com o último presidente do conselho de ministros da Monarquia. Políticos republicanos e monarquistas assinavam manifestos, envolviam-se em conspirações, planejavam golpes. [...] e havia ainda os positivistas, que exultaram com o advento do novo regime, julgando ter chegado a hora, a que se consideravam destinados, de exerceram a tutela intelectual sobre a nação. ”
[...]
Da invasão da Câmara Municipal a 15 de novembro de 1889, [...] participaram vários intelectuais. [...] como José do Patrocínio, [...] Olavo Bilac, Luís Murat, Pardal Mallet. Um mês depois, intelectuais do Rio enviaram um manifesto de entusiástico apoio ao governo provisório, em que se referiam à aliança entre os homens de letra e o povo. A pátria, dizia o manifesto, abrira as asas rumo ao progresso. “a literatura vai desprender também o voo para acompanha-la de perto”. O entusiasmo durou até o governo Floriano, quando se deu um cisma entre os intelectuais, e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir da capital para evitar a prisão.”
[...]
“Mais difícil de avaliar é o impacto da proclamação do novo regime a nível das mentalidades. [...] Não seria exagerado dizer que a saída da figura austera e patriarcal do velho imperador, que imprimia forte marca em toda a elite política e mesmo em setores mais amplos da população, significou a emancipação dos que seriam simbolicamente seus filhos. A mudança parece ter sido importante sobretudo no que se refere a padrões de moral e de honestidade. [...] Desabrotou o espírito aquisitivo solto de qualquer peia de valores éticos, ou mesmo de cálculo racional que garantisse a sustentação do lucro a médio prazo. [...] A quebra de valores antigos foi também acelerada no campo da moral e dos costumes. [...] parece-me que o antes era semiclandestino, sussurrado, adquiriu com a República [...] foros de legitimação pública. O pecado popularizou-se, personificou-se.”
[...]
“Mas há um ponto que é preciso salientar. O fato de a República ter favorecido o grande jogo da bolsa e perseguido capoeiras e o pequeno jogo dos bicheiros sugere uma recepção diferente do novo regime por parte do que poderia ser chamado de proletariado da capital. [...] Eu diria mesmo que a Monarquia caiu quando antigia seu ponto mais alto de popularidade entre essa gente, em parte como consequencia da abolição da escravidão. A abolição deu ensejo a imensos festejos populares que duraram uma semana e se repetiram no ano seguinte, cinco meses antes da proclamação da República. A simpatia popular se dirigia não só à princesa Isabel, mas também a Pedro II, como ficou evidenciado por ocasião da comemoração do aniversário do velho imperador, a 2 de dezembro de 1888. Segundo o testemunho do republicano Raul Pompeia, o Paço Imperial foi invadido por “turba imensa de populares, homens de cor a maior parte”. A polícia teve de intervir para convencer alguns dos manifestantes de que pelo menos vestissem camisa para se apresentarem ao imperador. No meio da multidão, salientava-se a imponente figura do príncipe Obá, um negro que se dizia rei africano. Príncipe Obá adornara de penas sua farda de alferes honorário. [...] A reação negativa da população negra à República manifestou-se antes mesmo da proclamação, através da Guarda Negra organizada por José do Patrocínio. Vários incidentes [...] o mais sério de todos se deu com a interrupção, que resultou em mortos e feridos[...] os republicanos não conseguiram a adesão do setor pobre da população, sobretudo dos negros. O próprio Silva Jardim, ao acompanhar o conde d’Eu em sua viagem ao norte do país em 1889, experimentaria mais uma vez, em Salvador, a ira da população negra. Por ele e pela República manifestaram-se apenas os estudantes da Faculdade de Medicina local. A simpatia dos negros pela Monarquia reflete-se na conhecida ojeriza que Lima Barreto, o mais popular romancista do Rio, alimentava pela República. Neto de escravos, filho de um protegido do visconde de Ouro Preto, o romancista assistira, emocionado, aos sete anos, às comemorações da abolição e às festas promovidas por ocasião do regresso do imperador de sua viagem à Europa, também em 1888. [...] vira no ano seguinte seu pai, operário da Tipografia Nacional, ser demitido pela política republicana.
[...]
“Dissociava-se o governo municipal da representação dos cidadãos. O fato era agravado pela frequente nomeação de prefeitos e chefes de polícia totalmente alheios à vida da cidade, muitas vezes trazidos dos estados pelos presidentes da República. [...] do espírito de república, guardavam no máximo alguma preocupação com o bem público, desde que o público, o povo, não participasse do processo de decisão. O positivismo, ou certa leitura positivista da República, que enfatizava, de um lado a idéia do progresso pela ciência e, de outro, o conceito de ditadura republicana, contribuía poderosamente para o reforço da postura tecnocrática e autoritária.”
[...]
“No que se refere à representação municipal, ela ficava solta, sem ter de prestar contas a um eleitorado autêntico. A consequência foi que se abriu por esse modo o campo para os arranjos particularistas, para as barganhas pessoais, para o tribofe, para a corrupção. E então fechou-se o círculo: a preocupação em limitar a participação, em controlar o mundo da desordem acabou por levar à absorção perversa desse mundo na política. Ao lado de funcionários públicos, passaram a envolver-se nas eleições e na política municipais, por iniciativa dos políticos, os bandos de criminosos e contraventores do estilo de Totonho e Lucrécio Barba de Bode, descritos por Lima barreto, os donos das casas de prostituição e de jogo. Eram esses malandros, no sentido que tinha a palabra na época, os empresários da política, os fazedores de eleições, os promotores de manifestações, até mesmo a nível da política federal. A ordem aliava-se à desordem, com a exclusão da massa dos cidadãos que ficavam sem espaço político. O marginal virava cidadão e o cidadão era marginalizado” – Nota minha: e esta situação perdura até hoje.
Nota final: É um livro com muitas notas, e entre elas me chamou atenção para buscar a leitura de outros livros, a saber:
José Vieira, O Bota-Abaixo. Chronica de 1904
Thomas Ewbank, Life in Brazil, or A Journal of a Visit to the Land of the Cocoa and the Palm
Mary Karasch, Rio de Janeiro: from Colonial Town to Imperial Capital (1808-1850)
Plácido de Abreu, Os capoeiras.
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