Marcus Oliver 11/10/2023
Mais um livro que utiliza a língua como instrumento de poder
Mais um livro que utiliza de maneira primorosa a ideia que a linguagem humana, e suas várias línguas são instrumentos de percepção da realidade e controle de grupos.
A autora, Suzette Haden Elgin, utiliza a ficção científica para fazer um experimento sobre como uma língua mulheril seria capaz de emancipar as mulheres numa distopia patriarcal com valores teocráticos cristãos para oprimi-las.
Esse uso da língua como um instrumento que molda a realidade dos seus falantes e de comunidades eu vi, primeiro, em ?Snow Crash?, de Neal Stephenson, mas Stephenson pensa a língua como um vírus que pode programar e reprogramar o cérebro. Elgin (escreveu sua obra antes de Stephenson) vê a língua como instrumento de mudança de percepção da realidade e de controle de certos grupos.
Vamos com o primeiro ponto: a língua se torna instrumento de mudança de percepções da realidade no momento em que comunidades decidem criar palavras e termos para determinados objetos, noções, ideias, sentimentos, etc.; logo uma língua pode fazer com que um indivíduo, ou comunidade, possa comunicar o que é importante, o que é válido e o que percebemos. Por exemplo, chamamos de braço (do ombro ao cotovelo), antebraço (do cotovelo ao punho) e, eu, decido chamar esse conjunto de braço e antebraço de braçáculo (braço+tentáculo). Agora que você sabe que eu posso ter dois braçáculos, você percebe que tem dois também, ou um, e a cada vez que você andar na rua você notará os braçáculos nas pessoas; isso é uma alteração na percepção de nossa realidade, pois, onde não existiam braçáculos, começaram a ser percebidos, notados e nomeados, então eles passam a existir.
A língua é esse instrumento que nos permite criar algo que não estava ali ou, se estava, não compreendemos por não termos uma palavra para defini-lo; logo uma língua que não traz termos que nomeie as realidades, dores, sentimentos ou outros fatores de um grupo que continuam como algo sem nome, não compreendido e que não será resolvido (curado, refletido, combatido, etc.).
Fiz essa volta toda pois as mulheres de ?Língua Nativa? trabalham no láadan (a língua mulheril) para criar uma língua que reflita, retrate e ajude as mulheres a mudarem sua percepção de mundo para que possam remodelar a realidade delas neste mundo distópico.
Entendendo esse primeiro ponto, já podemos entender então como a língua é um
Instrumento de controle contra as mulheres na narrativa (e na nossa realidade) são controladas e cerceadas pelos homens com uma língua binária e patriarcal (neste caso o inglês, e podemos extrapolar para o português também) com masculino/feminino; passivo/ativo; direita/esquerda; superior/inferior; essas polarizações e binariedades, na obra (e extrapolando para a nossa realidade), são o que mantém homens no poder e mulheres na subserviência. Exemplos disso: dizer que qualquer inconformação feminina é histeria; os sintomas da menopausa, uma condição normal a ser aturada (e não algo que pode ser tratado, amenizado e permitir uma vida plena sem as tais ?complicações de mulheres velhas?); mulheres são intelectualmente inferiores aos homens e suas atividades e sua utilidade é a da maternidade e o seu valor é para o homem da família (parentes ou esposo). São discursos como esse que mantém um status quo no mundo de ?Língua Nativa?.
Então ambas as ideias se complementam e dialogam e aparecem em diversas cenas e discussões entre os personagens, como se a autora utilizasse sua obra para testar suas teorias linguísticas (ela era linguista também, a língua era seu instrumento de pesquisa e trabalho) para nos apresentar uma obra primorosa de ficção científica e feminista. E claro que a obra não se trata apenas disso, há bem mais a se analisar e considerar.
Acho que é hora de trazer algo da história em si, expliquei trem demais kkkkkkk.
Acompanhamos a história por três vertentes: Nazareth (uma linguista da família das Linhagens); Michaela (uma mulher do povo leigo); e Thomas (o líder das Linhagens). Serão eles que apresentarão o mundo ficcional e as relações humanas presentes na obra.
Este mundo distópico extrapola o capitalismo para o campo interplanetário com raças alienígenas (seguindo a ideia do capitalismo global que se expandia na época da autora); o monopólio linguístico (da família das Linhagens, que são o grupo familiar que fazem o papel de intérpretes entre os alienígenas e os governos) nas transações comerciais interplanetárias; o povo leigo é quem não faz parte dos Lingos (que parecem bruxos e bruxas por saberem tantas línguas humanas e não humanas e nutrem um preconceito e ódio pro eles); e o governo americano faz experiencias antiéticas com bebês para ver se conseguem fazer seus próprios Lingos sem ter que depender das Linhagens
Desde o século XX os EUA, e o resto do mundo aparentemente, revogaram os direitos das mulheres, elas eram consideradas como menores incapazes e uma posse que permite lucro por meio do trabalho delas e um ativo genético para reprodução.
Veja que se trata de uma obra que traz diversos elementos da ficção científica, relações entre gêneros, distopia, feminismo e, principalmente, aquisição de linguagem e linguística.
Não dei a nota completa por um motivo, que percebo em algumas obras que trazem questões identitárias, essas obras às vezes trazem personagens sem defeitos ou como heróis dos mitos antigos sem pecados ou que os grupos deles cooperam sem nenhuma rixa, mágoa, rivalidade e/ou preconceito. Isso me preocupa por deixar os personagens ?rasos? (mesmo que um personagem seja o herói ou bom, ele é capaz de ações e sentimentos egoístas e injustas) e as interações entre os grupos mais maniqueístas (algo muito raro no livro, mas que deixa alguns questionamentos de realidade mesmo em uma ficção - creio ser uma natureza cética e desconfiada minha, e brasileira, por Machado ter nos treinado a sempre desconfiar dos narradores e do que nos é dito).
Por ser da área de Letras esse quesito de personagens sem defeitos possa parecer uma espécie de ?bom selvagem?, isto é, dar as qualidades ?civilizadas? (geralmente do homem branco europeu ou de mártires) aos personagens de alguma minoria, esvaziando ou omitindo a condição humana imperfeita capaz do bem e do mal ao mesmo tempo na nossa espécie independente do grupo que pertencemos.
Claro que tal abordagem de deixar o grupo oprimido com qualidade mais ?santas? permite mostrar melhor a diferença entre os oprimidos e os opressores malvados; mas é possível permitir o personagem oprimido ser capaz de algumas ?maldades?, pego como exemplo a Julia de ?1984? e I-330 de ?Nós? - que eram revolucionárias capazes de fazer guerrilhas, terrorismo e outros atos mais antiéticos, o que é plenamente plausível e aceitável no contexto delas por serem oprimidas - ou com Hiro Protagonist de ?Snowcrash?, ou qualquer herói guerreiro/soldado, que mata vilões e seus capangas sem um remorso, pois é para o ?bem maior?, mas matar é matar e nós somos cúmplices, claro (kkkkkk). São os defeitos e pecados dos personagens que nos ajudam a nos conectarmos ainda mais com eles, não apenas seus ideais, mas o conjunto de vivências, características, ideais e defeitos.
Perdão pela resenha longa, mas uma obra tão rica e vasta como a de Elgin não me permitiria nada menos que isso, na verdade necessitaria de mais.