Juni 04/09/2021
Exercício de resistência, representatividade rasa e mensangens morais forçadas
Apesar de não ser fã de reality shows, não chego a desgostar deles e gosto bastante de drama, confusão e treta. Por isso estava curiosa com a premissa do livro e pronta para embarcar nela com a mente aberta. Mas o que começou como uma experiência ok, mesmo que não incrível, acabou como um livro arrastado que eu não gostava de quase nada que lia. Mas uma coisa essa autora conseguiu: pela primeira vez me senti descontente com algo que eu queria no meio do livro acontecendo no fim dele.
Mas não vamos nos precipitar e começar por onde realmente importa. A protagonista, Bea, é uma influencer gorda que é oferecida uma vaga em um reality para mudar a percepção da nação de romance, uma premissa interessante, porém, por mais que adorem repetir isso em recomendações, reviews e resenhas, Bea está infinitamente longe de ser uma protagonista empoderada e esse livro está *longe* de ser boa representação.
Apesar da promessa de uma protagonista gorda que é certa de si, se ama, e é independente e de um livro que mulheres gordas podem ler para se sentirem bem e representadas o que o leitor recebe é uma chuva, não, *tempestade* de gordofobia intensa tanto externa quanto interna, insegurança extrema, linguagem auto-depreciativa, humilhação, ataques verbais recorrentes, cenários dignos de pesadelo sendo jogados na nossa cara e ataques virtuais pesados que persistem pela grande maioria do livro. Agora, não me entenda errado, meu problema não é que a protagonista tem essas inseguranças, eu concordo que o conflito interno é importante e faz uma narrativa interessante, o problema é a intensidade e a constância dessa insegurança. Bea não é só uma protagonista insegura, ela é uma pessoa que está completa e totalmente convencida que todo e qualquer homem na face dessa terra tem nojo da existência dela como mulher gorda e acha impossível algum homem decente e bonito “descer ao nível dela”, deixando isso claro o livro quase todo, que está a todo momento pensando que as pessoas ao redor estão a julgando, constantemente pensando que ela tem uma vida horrível e sofrida por ser gorda, que é patética e que nunca vai achar amor. E, apesar de entender a tentativa clara da autora de fazer os leitores simpatizarem com ela, a dose ficou um pouco exagerada no ponto que não conseguia mais levar a protagonista a sério mesmo com as inseguranças e vivências dela sendo tão parecidas com a minha, que também sou gorda e cresci assim. Além disso, ela é forçada a passar por todo tipo de experiência desconfortável e, potencialmente, gatilhadora durante a história, com alguns participantes do programa separados para representar vários tipos de pessoas que fazem a vida de pessoas gordas um inferno: os infantis que não param de fazer piadinhas idiotas, os cruéis que ta acham a escória, os fetichistas que te veem como um objeto sexual e os que agem como se fossem bem intencionados, mas não sabem do que estão falando.
E isso me leva a minha maior preocupação com esse livro e a forma que ele foi comercializado: Apesar de eu conseguir me desligar dos ataques gordofóbicos constantes e dos pensamentos nocivos da protagonista eu sei que muitas pessoas não conseguiriam, que pegariam esse livro com a expectativa de um romance fofo e alguns babados, talvez um ou outro comentário sobre gordofobia, e seriam recebidos por isso. Ataques e repetição de discursos que com certeza foram usados contra elas. E eu posso garantir: uma repetição em eco dos seus piores medos e pensamentos repetidos assim podem mexer muito com alguém. E sim! Eu sei que ela sai dessa, move adiante e progride, mas essa mudança vem tão longe no livro que até lá é uma experiência maçante de sofrimento e gordofobia.
Mas esse não é meu único problema com o livro, longe disso, fora da gordofobia internalizada nossa protagonista ainda é uma pessoa detestável. Eu comecei o livro gostando dela, torcendo por ela, simpatizando com ela, mas aos poucos um padrão foi aparecendo. Bea é uma mulher de 30 anos, mas é muito imatura, além de ser hipócrita, dramática e ser rápida a julgar os outros por coisas minúsculas ou sem prova nenhuma. Todos esses traços que, em si, não seriam ruins, se não fosse o fato que a autora quer que concordemos com isso, que vejamos Bea como a certa ou a menos errada até mesmo quando ela erra e isso é reforçado não só na narração, mas nas ações de personagens ao redor. E talvez eu até gostasse dela com esses erros se não tivesse que ler ela constantemente tomando ações que foram emolduradas como compreensíveis, justas ou algo que deveria me fazer simpatizar com ela enquanto qualquer outra pessoa que agisse de forma semelhante ou mais branda era tratada como vilã.
Além disso os outros personagens não são exatamente bons, a maioria é bem rasa, alguns presos em uma única caracterização e outros beiram ao estereótipo. E, por mais que esse livro seja elogiado por sua diversidade, na maioria do tempo ela parece só uma forma da autora ganhar pontos por ter feito isso, indo desde personagens não brancos que esse detalhe é tão irrelevante para a vivência deles que se alguém apagasse umas poucas palavras do livro inteiro nada mudaria, como personagens lgbt e que desviam do padrão de gênero que a existência e conversas sobre a vida parecem mais uma aula para quem não conhece que uma pessoa que existe e respira.
Na verdade, muito desse livro parece uma aula para pessoas que não vivem certas experiências que algo vivido por esses personagens, principalmente o último capítulo onde nossa protagonista muda drasticamente em um intervalo curto de tempo que foi pulado e do nada se torna empoderada e iluminada, dando discurso atrás de discurso com lições de moral que em alguns momentos foram forçadas.
A história e o enredo em si foram uma montanha russa para mim. Em certos momentos esse livro me agarrava, me deixando curiosa com o andar das coisas, em outros se arrastava tanto que era quase tortura e em outro só estava entediada com o tanto que eu não ligava para nada. A prosa não chega a ser ruim, mas muitas descrições de lugares e roupas usadas dependem de você saber dos lugares, marcas e designers citados, em vez da autora passar uma imagem que nós podemos visualizar sozinhos eu passei a maior parte do livro pulando as descrições de roupas por não ligar e não ter paciência de ficar fechando o livro para pesquisar os diversos nomes jogados na página em vez de uma descrição.
Outro problema é o romance e os encontros, para um livro que é marcado como romance esse está bem fraco neste departamento. Se você gosta do quesito escapista de ler duas pessoas em roupas lindas indo para lugares incríveis e com comidas chiques você provavelmente vai adorar os encontros, mas, se você se importa com a substância do relacionamento, como eu, provavelmente vai achar a maioria dos encontros entediantes. Com um problema recorrente sendo a protagonista constantemente falando que ela tem uma ótima química com todos os homens ali, mas não é algo que se traduz na página e nas interações deles na maioria do tempo.
E, por último, temos o formato do livro. Pra mim, o formato de mistura de mídias funcionou em alguns momentos, ajudando a passar uma visão de tudo, em outros foi muito mal utilizado, entediante e, em alguns momentos, até piorando a experiência. Apesar da ideia de dar uma experiência da conversa e reação pública para o programa é interessante, em muitos momentos temos trechos que não são relevantes para os acontecimentos ou são mais longos que o necessário (o que me vem em mente é o podcast que ela coloca transcrições de trechos que sempre se estendem para a propaganda dos patrocinadores, que parecem mais que a autora pensou em varias marcas falsas como um exercício e não conseguiu abrir mão delas depois). Além da questão de que muitas vezes as pessoas nesse livro escrevem na internet como uma extensão de como a autora escreve na prosa, o que não é exatamente um problema, mas com certeza quebrou muito a imersão do livro por não parecer pessoas reais usando a internet.
Mas o maior problema, pra mim, com o formato é o mesmo com a dita química que nossa protagonista ama falar que tem com os participantes: Em vários momentos a mistura de mídia é usada para descrever de uma forma rápida e que, francamente, me pareceu meio preguiçosa, momentos chave e interessantes. Em vez de podermos ler algumas partes que eram o que seria interessante das cenas acontecendo temos que ler um monte de contas aleatórias nos falando o quão chocantes, engraçados, românticos, etc, esse momentos foram. O pior exemplo, na minha opinião, foi com a decisão final da protagonista, a autora cria uma tensão (que apesar de eu ter previsto exatamente o que ia acontecer estava ali por que queria ver como aconteceria) e quando a cena finalmente vai começar o capítulo acaba e ao virar a página você não tem a cena, você tem uma conta no twitter anunciando a escolha dela tornando esse um dos finais mais anti climáticos que eu vi em um longo tempo. Para comparação, imagine um filme de investigação que, quando o detetive abre a boca para anunciar a solução do caso, a cena corta para um grupo de policiais que nunca apareceram antes conversando sobre quem é o assassino e o quão chocados eles estão com isso. Esse é o nível.
Tudo isso somado tornou um livro mediano em uma experiência morna na maior parte do tempo e indutora de ódio no resto.