tbbrgs 11/08/2022
Valter Hugo Mãe sabe as manhas de ser um escritor
Em A máquina de fazer espanhóis, o personagem principal, o barbeiro António Jorge da Silva, de 84 anos, perde a mulher com quem conviveu por cinquenta anos e passa a morar no Lar da Feliz Idade. Valter Hugo Mãe desenvolveu brilhantemente, neste romance, os traços e a evolução desse personagem, desde os primeiros capítulos, quando ele ainda está lidando com o luto, casmurro, solitário e egoísta, aos seus episódios finais, onde ele passa a ter que se defrontar com sua própria mortalidade, ao mesmo tempo em que observa as vidas (ou seriam as mortes???) de seus colegas que também vivem no lar. Defronte de sua mortalidade, António Jorge da Silva, ou o "colega Silva", como é chamado por seus amigos do lar, começa a se sentir frágil e impotente. Perde suas parcas crenças religiosas, se vê abalado ao perceber que não há mais nada para que possa sustentar-se e que, depois de sua morte, ele simplesmente retornará ao pó, sete palmos abaixo da terra, sendo carcomido pelos vermes. A consciência deste fato, junto da proximidade cada vez mais iminente de sua própria morte, deixa-o cada vez mais depressivo e debilitado, o que o faz ter pesadelos que terminam em acontecimentos impensáveis. Grande parte das ações do protagonista parecem ser justificadas pelo nível de debilidade psicológica e emocional em que ele se encontra. Mas há também, no decorrer da história, muitas discussões acaloradas entre o grupo principal de amigos acerca de temas como a pátria, a religião, a política, a família e a passagem do tempo, muitas das quais ressoam ainda na minha memória e me fazem questionar e criticar um ou outro ponto. Além disso, senti falta de alguma personagem feminina marcante, que não estivesse ali para sofrer, para morrer, para ser alvo de piada ou pano de fundo. A súbita aparição da Dona Glória do Linho, nas trinta páginas finais da história, foi forçada demais para ser considerada, ao mesmo tempo em que o Esteves foi provavelmente um dos melhores personagens já criados (ou, melhor dizendo, recriados). Enfim, esse livro tem erros e tem acertos. As próprias contradições nas quais o personagem principal entra enriquecem a narrativa, pois mostram como o personagem evolui, muda de ideia, para logo depois desdizer o que antes havia dito. Isso realmente mostra um primor estilístico, narrativo e linguístico por parte do autor, pois as contradições são acima de tudo humanas. Valter Hugo Mãe sabe as manhas de ser um escritor.