Andreia Santana 07/08/2016
Máquina de moer pensamentos
Uma solidão ruidosa é uma comovente e lírica cerimônia de adeus à liberdade de expressão, ao ato de pensar, ao que nos torna humanos. Publicado na antiga Tchecoslováquia em plena vigência da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), o livro conta a história de Hanta, um homem que há 35 anos opera uma prensa hidráulica de compactar papel, usada para destruir livros considerados 'perigosos' pelo sistema político vigente.
Sozinho em um porão imundo e infestado de ratos, ouvindo dia e noite o ruído da prensa mastigando quilos e mais quilos de papel, Hanta mantém uma arriscada operação para resgatar da morte os livros condenados, enquanto se afoga em litros e mais litros de cerveja. Apesar de não ter tido uma educação formal, ele começa a ler as obras que deveria destruir e conduzido pelos autores 'perigosos', percebe a realidade sufocante e opressiva em que vive. Mas embora a perceba, está amarrado a essa existência miserável, "esperando a aposentadoria ou a morte, o que chegar primeiro".
A solidão de Hanta é densa e angustiante. Sua vida se resume a beber, compactar papel e filosofar, a ponto de perder a noção dos próprios pensamentos e não discernir o que vem dele mesmo e o que foi adquirido com as leituras clandestinas. As únicas interações humanas se resumem a visitar um tio, ex-maquinista, que ainda vive preso à antiga rotina da estação de trens, duas ciganas que sobrevivem de catar papel para alimentar a prensa e um ex-professor universitário que perdeu o juízo junto com o cargo.
Hanta é um homem simples, resignado com sua vida miserável, preso a ela como os ratos que escalam as pilhas gigantescas de papel e vez por outra são esmagados pela prensa ou por um desabamento das montanhas de palavras que crescem a uma altura vertiginosa. Ele tem consciência da ratoeira (porão) onde vive preso, mas está condicionado a essa prisão. Por mais que alimente a prensa (o sistema), a máquina nunca fica saciada e segue devorando letras, sílabas, frases (espíritos) e lombadas (carne e ossos). Não há revolta ou questionamento, apenas dor e resignação.
Ameaçado de perder o emprego para trabalhadores mais jovens, robotizados e padronizados pelo regime, eficientes operários que apertam botões de máquinas mais modernas que a sua velha companheira enferrujada no porão, Hanta delira e imagina uma grande prensa a devorar a cidade de Praga e todos os seus habitantes, seus legados, a cultura, a individualidade e as particularidades que fazem de cada criatura um ser único, de cada país e cada povo um universo a descobrir.
Sobre a própria cabeça, no minúsculo apartamento em que dorme quando o expediente no porão termina, ele mantém uma espada de Dâmocles representada por prateleiras instaladas sobre a própria cama, com as duas toneladas de livros que salvou da compactação. Em seus delírios, imagina-se esmagado por todo aquele conhecimento acumulado.
Se a ignorância oprime, não ter ciência da opressão, ou estar anestesiado pela noção de cumprir um dever cívico, pode ser uma benção para o indivíduo e uma maldição para a humanidade. Vide os jovens operários destruindo livros eficientemente, sem a menor curiosidade em saber o que suas páginas contém. E para cada pacote que vira uma massa indistinta de celulose, Hanta sangra na alma, justamente por não ser ignorante do significado dessa ação, mas por faltar coragem para mudar o rumo das coisas.
O fato de intuir o que será do futuro da humanidade sem o conhecimento negado pelo sistema, gera um desconforto que enlouquece, como ocorre com o velho professor universitário que vive a caçar antigos exemplares de jornais filosóficos banidos.
Embora trate de uma realidade específica, Uma solidão ruidosa fala uma língua universal, aquela que diz que o conhecimento, por mais doloroso que seja, é menos perigoso e preferível à ignorância.
Com regimes totalitários, sejam de esquerda, direita, centro, ou mais contemporaneamente, com a globalização e sua 'cultura mais do mesmo', o que acontece é justamente a anulação das individualidades, seguida da aniquilação da cultura única de cada povo. Desumanizar para controlar é o lema. E quando deixamos de ser humanos, a solidão tranquila da meditação ou o aconchego da leitura, dá lugar ao vazio torturado dia e noite pelo som de uma prensa que mastiga livros e engole espíritos.
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