Cathy
23/10/2023Relatos sobre a filha entremeados pela trajetória da autora ao longo da vidaApesar de já ter adquirido esse livro há bastante tempo, como já sabia de antemão que tratava do relato de uma mãe sobre a morte de sua filha, me custava retirá-lo da estante. Ele permanecia zombeteiro olhando para mim todos os dias, enquanto eu me apropriava de outros exemplares para ler. Somente após ler A Soma dos Dias, da mesma autora, tive a coragem, para não dizer a curiosidade de abrir as páginas de Paula.
Não doeu como eu supunha doer. Transcorreu como um rio, não de lágrimas, mas da corrente de formação dessa autora, como ser humano, como mãe e mulher. Simplesmente maravilhoso, como tudo que Isabel escreve, à exceção de apenas um que não gostei.
Não se trata de narrativa de uma mãe amarga que perdeu sua primogênita. Muito pelo contrário. É uma leoa que fez de tudo para tentar salvar sua filha de um diagnóstico terrível e se resignou por tê-la que deixar partir, com a certeza que guardou em seu coração tudo o vivido com a filha. Belíssimo o relato.
Os capítulos que tratam da filha são entremeados do relato da vida de Isabel, desde sua mocidade, passando pelo período de exílio, durante o golpe ditatorial ocorrido no Chile. Seus amores, suas desventuras, suas lutas, suas vitórias e perdas.
CITAÇÕES DE RELEVO:
A escrita é uma monga introspecção, é uma viagem às cavernas mais escuras da consciência, uma lenta meditação. Escrevo tateando o silêncio e pelo caminho descubro partículas de verdades; cristaizinhos que cabem na palma da mão e justificam minha passagem por este mundo.
(Hospitalização de Paula) A partir desse momento, a vida parou para você e para mim também, nós duas atravessamos o misterioso umbral e entramos na zona mais escura.
Consciente de que se exige uma grande leveza para desprender-se do chão, foi jogando tudo fora, desfez-se dos bens terrenos e eliminou sentimentos e desejos supérfluos, ficando só com o essencial, escreveu umas tantas cartas e, por último, se estendeu na cama para não mais se levantar.
Suponho que desse sentimento de solidão nascem as perguntar que me impelem a escrever, na busca de respostas se fazem os livros.
Ao longo dos anos aprendi a decifrar os códigos e entender as chaves dos sonhos, agora são mais nítidas as mensagens e elas me servem para iluminar as zonas misteriosas da vida cotidiana e da escrita.
Este homem me traz uma rajada de ar fresco, as adversidades fortaleceram seu caráter, nada o deprime, dispõe de uma força inesgotável para enfrentar as lutas cotidianas, é inquieto e apressado, porém uma calma budista o invade quando se trata de suportar os infortúnios, razão pela qual é um bom companheiros nas dificuldades.
...não tenha medo porque sairá fortalecida dessa provação, que nos momentos mais desesperadores, quando todas as forças se fecham e nos sentimos num beco sem saída, sempre acaba se abrindo uma fresta inesperada pela qual poderemos escapar.
(Falando do golpe militar no Chile) Como tudo pode mudar tão súbita e radicalmente? Como a realidade se distorceu daquela maneira? Todos formos cúmplices, a sociedade inteira se enlouqueceu.
Há um momento em que já não se pode deter a viagem iniciada, rolamos em direção a uma fronteira, passamos através de uma porta misteriosa e amanhecemos do outro lado, em outra vida. A criança entra no mundo e a mãe, em outro estado de consciência, nenhuma das duas volta a ser a mesma. Os filhos, como os livros, são viagens ao nosso interior, nas quais o corpo, a mente e a alma invertem seus rumos, regressando ao próprio centro da vida.
Nestes longos meses, foi descascando como uma cebola, camada após camada, mudando, deixei de ser a mulher que era, minha filha me deu a oportunidade de olhar para dentro e descobrir os espaços interiores, grandes vazios escuros e estranhamente aprazíveis, que eu nunca havia explorado. São lugares sagrados e, para atingi-los, preciso percorrer um caminho estrito e cheio de obstáculos, vencer as feras da imaginação que saltam diante de mim. Quando o terror me paralisa, fecho os olhos e me abandono, com a sensação de submergir em águas agitadas, por entre os golpes furiosos das ondas. Acho que estou morrendo entre instantes que, na verdade, são eternos, mas pouco a pouco percebo que continuo viva apesar de tudo, porque, no torvelinho feroz, há um resquício de misericórdia que me permite respirar. Deixo-me arrastar sem opor resistência e, aos poucos, o medo retrocede. Flutuando, penetro uma gruta submarina e lá descanso por algum tempo, a salvo dos dragões da desgraça. Outro dia começa, como todos os dias.
Àquela altura nossa casamento tinha virado uma bolha de vidro que exigia imensas precauções para não se espatifar; tratávamo-nos com cerimoniosas regras de cortesia e fazíamos esforços heroicos para permanecer juntos, embora nossos caminhos se afastassem cada vez mais com o passar dos dias.
Talvez a gente esteja no mundo para procurar o amor, encontrá-lo e perde-lo, muitas e muitas vezes. Nascemos de novo a cada amor e, a cada amor que termina, abre-se uma ferida. Estou cheia de orgulhosas cicatrizes.