Ladyce 11/01/2022
No estudo da literatura a expressão alemã Bildungsroman é universalmente usada para designar o romance de formação, aquele que mostra o crescimento emocional e psicológico do personagem principal, retornando às lembranças de infância, passando pela adolescência até amadurecer como adulto. É um dos campos mais férteis de boa literatura e há numerosos exemplos: Jane Eyre, Charlotte Bronté; Mulherzinhas, Louise May Alcott; O apanhador no campo de centeio, J. D. Salinger; Grandes Esperanças, Charles Dickens; Educação Sentimental, Gustave Flaubert; Não me abandone jamais, Kazuo Ishiguro, Kafka à beira-mar, Haruki Murakami e muitos outros. Não sei se Um outro Brooklyn, de Jacqueline Woodson, [tradução de Stephanie Borges] terá o fôlego e importância para entrar nesta lista de clássicos. Isto o futuro decidirá. Mas a autora conseguiu trazer algumas bem-sucedidas novidades para essa narrativa.
O encanto dessa narrativa está no staccato das memórias que chegam à Augusta, a jovem, agora uma antropóloga, vê de longe uma amiga de infância e ao invés de ir abraçá-la, dá as costas à amiga e à sua adolescência simultaneamente. Lembra-se do período em que morou no Brooklyn, vinda do Tennessee, com o pai e o irmão. O texto reproduz o vaivém de memórias, o diálogo interno dela, em que uma coisa puxa outra. Ela se lembra do quarteto de garotas, do qual fazia parte, que, como típicas adolescentes, fazia tudo junto; da sua chegada ao Brooklyn; da conversão do pai ao islamismo; do despertar sexual. Aos poucos descobrimos o que aconteceu com sua mãe e a dificuldade da menina em aceitar a ausência materna. Mas encantadora, mesmo, é a linguagem, quase poética, dessas memórias e o ritmo em que são trazidas à tona. Compreendemos assim os degraus por que passou em seu crescimento emocional.
“Não éramos pobres, mas vivíamos na fronteira da pobreza” ela se recorda. As aventuras do quarteto de meninas, vindas de diferentes lugares, com valores familiares diversos, ocupa a maior parte da narrativa, e compreendemos, assim como ela, as sementes dos futuros que as esperam. No posfácio, Jacqueline Woodson explica “queria escrever sobre os vínculos que compartilhamos na juventude e todas as parábolas desses laços”. Com essa intenção aprendemos também sobre Sylvia, Angela e Gigi. Quantas delas conseguirão sair dessa “fronteira da pobreza” e quantas sofrerão pela imersão no abismo de que as rodeia? Essa preocupação quase sociológica da autora, é feita de maneira delicada, reticente, pontuada pelas pequenos textos da antropóloga em que Augusta se transformou sobre os hábitos de outros povos no mundo.
A caminhada de cada uma dessas adolescentes é única, ainda que na adolescência, imaginassem que teriam vidas próximas umas das outras e que seriam para sempre amigas. E é no ponto de partida dessa história, quando Augusta dá as costas à Sylvia; dá as costas às memórias, à traição que sofreu da amiga, que aprendemos exatamente o que a última frase do livro nos diz; ‘Em algum ponto, todas as coisas, tudo e todos, se transformam em memória.”
Este é um elegante romance de formação. Breve, poético em estrutura e no ritmo das elipses. Admirável na sua concisão. Recomendo a leitura sem objeções.