jota 03/04/2018Capitalismo: vida real; socialismo: conto de fadas?Grande parte de Casei Com Um Comunista é sobre o período em que os EUA vivenciaram o macarthismo (1950-1957), ou seja, a "prática de acusar alguém de subversão ou traição" (grato, Wikipédia, pela síntese), coisa na qual o senador republicano (inicialmente democrata) Joseph McCarthy (1908-1957) foi especialista. Daí o verbete com seu nome.
Eram os tempos da Guerra Fria, marcada por disputas estratégicas e conflitos indiretos entre EUA e União Soviética, travados entre cortinas de ferro e suspeições de ambos os lados. Muitos americanos simpatizantes do regime soviético, alguns até não, foram delatados ou perseguidos pelo comitê de investigação de atividades antiamericanas, presidido pelo senador McCarthy, mui amigo de Richard Nixon, aquele mesmo do emblemático caso Watergate (mas isso são outros quinhentos, outra história).
O livro de Philip Roth mergulha com profundidade nessa porção da história americana e personagens reais (daquela época e posteriores) como Roosevelt, Truman, Nixon, Reagan, Ford, Bush pai, Clinton etc. são citados aqui e ali por dois dos personagens principais da ficção em longas conversas, décadas depois dos acontecimentos narrados. Eles são Nathan Zuckerman, escritor e alter ego de Roth, e Murray Ringold, professor de Nathan no ginásio e irmão de Ira Ringold, o comunista do título, ator de sucesso em dramas radiofônicos nos anos 1950, por aí.
Ira foi denunciado como comunista em um livro, justamente chamado Casei Com Um Comunista, escrito por sua mulher, Eve Frame, atriz do cinema mudo e posteriormente de radioteatro americano. A história de Eve Frame e Ira Ringold, de seu casamento, da separação e denúncia nos é contada com muitos detalhes. Aqui também, como na maioria das obras de Roth (ou na totalidade, não sei, pois não li todos os seus romances), a comunidade judaica aparece igualmente como pano de fundo da história.
Apesar disso, pode-se ler Casei Com Um Comunista com o interesse que vai além da política, história ou sociologia, pois os personagens principais (e até alguns secundários) trazidos à cena por Roth são muito interessantes o tempo todo e têm histórias singulares para conhecermos. Mas certamente nem todos leitores irão apreciá-las, especialmente aqueles que preferem enredos movimentados. Que não é bem o caso deste livro, que no fundo é um imenso diálogo entre um ex-aluno e seu professor, com capítulos longos e algumas passagens também longas, nem sempre lá muito estimulantes para qualquer tipo de leitor.
Mas eu gosto muito dos livros de Roth, li muita coisa dele (este deve ser o décimo quinto ou décimo sexto livro dele lido), então não vou me alongar na enumeração das qualidades do escritor e da obra, apenas transcrever um trecho dela que é bastante esclarecedor acerca do que ele pensa sobre os dois sistemas políticos e econômicos mais defendidos, digamos assim, pelas direitas e esquerdas políticas mundo afora. É o pai de Nathan jovem quem fala, ao perceber que o filho poderia estar sendo seduzido pelo socialismo da União Soviética, influenciado pelo comunista do título, Ira Ringold:
"Garoto, não dê ouvidos a ele. Você vive na América. É o maior país do mundo e o melhor sistema do mundo. Claro, tem gente que se fode. Acha que ninguém se fode na União Soviética? Ele diz para você que o capitalismo é um sistema de competição cruel. E o que é a vida senão uma competição cruel? Este é um sistema em sintonia com a vida. E como é assim, funciona. Olhe, tudo o que os comunistas dizem sobre o capitalismo é verdade, e tudo o que os capitalistas dizem sobre o comunismo é verdade. A diferença é que nosso sistema funciona porque se baseia na verdade do egoísmo humano, e o sistema deles não funciona porque se baseia num conto de fadas sobre a fraternidade do povo. É um conto de fadas tão maluco que eles têm de pegar as pessoas e levar lá para a Sibéria para ver se acreditam nele. Para fazer as pessoas acreditarem na sua fraternidade, eles precisam controlar todos os pensamentos delas ou então fuzilar. Enquanto isso, na América, na Europa, os comunistas continuam com o seu conto de fadas, mesmo sabendo o que acontece, na realidade."
O que se sabe também é que tem mais gente querendo ir para os EUA do que para Cuba, para Miami do que para Havana. E até mesmo querendo ir para Boa Vista (Rondônia) do que para Caracas. Da mesma forma, tem muito pouca gente querendo passar férias em Pyongyang, quanto mais morar lá, não é mesmo? De volta a Roth, o que se fica sabendo acerca do comunista Ira Ringold é que ele não era um agente de Moscou, mas um sujeito que tinha batalhado muito para melhorar de vida e por conta de seus contatos com trabalhadores e suas leituras passou a enxergar o mundo de uma outra forma, diferente da que enxergava um patrão capitalista de então, logicamente.
Nos tempos da Guerra Fria tudo era como os personagens de Roth nos contam, com o perigo vermelho real ou imaginário rondando a América, como muitos supunham, mas agora seria assim tão diferente? Teria a Guerra Fria acabado com a dissolução da União Soviética em 1991, de fato? As novas tensões entre a Rússia de Putin e grande parte dos países desenvolvidos do Ocidente parecem afirmar que não, como no recente caso de expulsão de diplomatas russos de alguns desses países e vice-versa. Não que haja tanta gente assim por aí defendendo o socialismo hoje em dia, nem mesmo na Rússia, mas aqui no Brasil há quem acredite, por ignorância ou má-fé, nas deslavadas mentiras dos petistas e seus seguidores sobre as maravilhas do socialismo em Cuba, por exemplo.
Até poucos anos atrás também falavam do "excesso de democracia" na Venezuela bolivarista de Chávez, dizimada política e economicamente pelo ditador Maduro. E tanto num caso como noutro quase sempre a culpa pelos problemas desses países é colocada não em seus próprios governantes e sistemas políticos, mas nos EUA ou no Ocidente como um todo. Agem desse modo, mesmo sabendo o que acontece de fato nessas ditaduras, em que críticas ao sistema são proibidas e as pessoas que as fazem quase sempre acabam nas prisões, quando não mortas pela repressão selvagem que se verifica ali. O livro de Roth não é simplesmente uma história de amor e desunião entre um casal dos anos 1950, longe disso: ele nos faz pensar em muito mais coisas do que simplesmente diz seu curioso título.
Lido entre 21/03 e 02/04/2018.