Gustavo.Romero 28/04/2018
A opressão do cotidiano
Um dos feitos mais notáveis em literatura é a escrita de enredos que, a despeito de composição enxuta, conseguem reproduzir magistralmente temáticas de amplitude geral ou universal, de forma que geralmente reconhecemos por ‘microcosmos’. Por óbvio, García Lorda não ficaria fora dessa. Em ‘A casa de Bernarda Alba’, Lorca explora mais uma vez seu ‘teatro de raiz’, cuja tonalidade são as peças da tradição espanhola (mais especificamente, da região de Granada, onde nasceu e viveu), para construir uma peça de texto curto e extremamente perspicaz, atual até para os dias atuais. Adotando uma opção muito ousada, Lorca utiliza apenas a ação de personagens femininas para tratar da opressão masculina – construção magistral que só poderia ser levada adiante por um homossexual assumido em plena de década de 1930 na conservadora Espanha (o que, aliás, parece ter custado a vida do escritor). Essa opressão só é trazida à luz da ação do teatro pelo comportamento e valores das próprias mulheres, e fazendo isso Lorca consegue dar conta de dois problemas latentes: o primeiro, mais evidente, é a atuação da opressão do feminino pelo masculino como fenômeno que se reproduz a despeito da figura do ‘homem’, uma pressão constante e sufocante que se situa nas sinapses das relações sociais e que, por esse motivo, está na base dos preconceitos reproduzidos também pelas ‘mulheres’. Há a presença constante das figuras masculinas na peça, todas fora da cena e criando o perímetro dentro do qual as mulheres se vêem cercadas e limitadas (não é por acaso que a peça começa com a morte do patriarca da família e que toda a ação se restringe à casa da família, demonstrando ambos os aspectos, o homem sempre presente, mesmo que não fisicamente, e o espaço limitado de expressão feminina).
O segundo problema, que Lorca alcança a partir do primeiro – e esse ponto é, para mim, o que torna a peça especial magistral - é a questão da opressão de forma geral. Como poucos, Lorca consegue enxergar num fenômeno mais específico (a opressão da mulher) um fenômeno de caráter mais amplo que se produz a partir da supressão permanente de mecanismos de autenticidade não apenas da mulher, mas do indivíduo, ou o que muitas vezes se chama de ‘conformidade social’. Um longo e muito enraizado processo de alienação do indivíduo que se estabelece a partir dele próprio, destituindo o ser de seu próprio corpo. Fazendo isso, Lorca coloca o dedo numa ferida dolorosa, a questão da discriminação por gênero como forma de representação da recusa do ser humano em aceitar o ‘outro’. A personagem de Bernarda é, portanto, duplamente castradora: por um lado, sua atuação específica é de uma mulher que carrega adiante os valores da opressão masculina, castrando a essência de suas filhas utilizando como referência sua própria escala de valores, impondo-lhes sobre as demais; por outro lado, Bernarda representa a tensão que se apresentava na própria Espanha, atuando como figura ditatorial produtora de conformidades e obediência resignada.
A linguagem e o texto de Lorca resumem a provocação essencial da peça: a construção da narrativa a partir da própria linguagem, a partir do próprio enlace entre as cenas e os atos, representa o desafio com que lidamos no nosso cotidiano, em que os conceitos e concepções que subjazem às nossas relações reproduzem-se além de nosso controle consentido, carregando eles próprios estruturas de longa duração que nos restringem as direções possíveis. É por esse motivo que Lorca declarava-se igual igualmente ‘anarquista’ e ‘libertário’, ‘tradicionalista’ e ‘monarquista’: o problema não são apenas as instituições, mas a forma com que lidamos com elas e como elas refletem os comportamentos enraizados na natureza humana. Qualquer ação ‘revolucionária’ deve partir de dentro para fora.