Lucio 19/07/2021
Anticapitalismo: ressentimento, desinformação e ignorância
INTRODUÇÃO
Este é um ensaio mais psicológico e sociológico, quiçá filosófico, do que econômico de Mises, embora o tema da economia seja o centro de suas atenções. Ele lida com tal tema a partir de uma análise cultural mais vasta, buscando estabelecer as razões das pessoas em geral tenderem, em nossa cultura ocidental, a menosprezar o capitalismo. Além da habitual crítica de que cometem erros de natureza econômica, Mises nos chama a atenção para outros fatores que dizem respeito à moralidade humana e até mesmo à massiva propaganda progressista. Daí que o autor busca distinguir entre os espantalhos comumente aceitos a respeito do capitalismo e o que ele realmente é, bem como apresenta como há uma própria literatura que, bem aos moldes ideológicos, propagam as visões equivocadas a respeito deste sistema econômico.
TESES GERAIS
O que o autor constantemente ressalta é o fato de que o capitalismo é o único meio de realmente lidar com os problemas sociais de matiz econômico, i. e., é o meio mais eficaz que se poderia conceber para lidar com a pobreza. Mais do que isso, o autor estabelece o consumidor como o verdadeiro determinador da mobilidade social - algo característico apenas das sociedades capitalistas e contrário às antigas aristocracias - e o empresário como seu servidor - caso queira crescer. O serviço ao consumidor é a essência do capitalismo, e, assim, tanto o empresário como o próprio comprador são mutuamente beneficiados.
Contra tais teses, há objeções que são introdutoriamente refutadas pelo autor. Mas Mises não trata apenas de objeções econômicas ao capitalismo. O autor busca lidar com objeções de ordem filosófica, sociológica e moral. Ele apresenta defesas contra a acusação de que o capitalismo leva ao materialismo, à injustiça e que não conduz à liberdade. Suas respostas giram em torno da liberdade dos indivíduos que caracterizam as ofertas, mas nota que na sociedade capitalista há gloriosas produções artísticas, principalmente no campo da música e literatura. Mises também corrige o conceito de injustiça atribuído ao capitalismo, observando como, de fato, se dá a 'distribuição' natural das riquezas mediante a poupança e o investimento. E, por fim, respondendo às objeções, faz uma vigorosa defesa da liberdade segundo a ordem social, típica dos regimes democráticos ocidentais.
Uma das principais teses de Mises para a indisposição a tal sistema é que há um ressentimento inerente ao espírito anticapitalista, oriundo do fato de que, nesta sociedade, somos colocados em uma situação de praticamente total responsabilidade por nosso destino, de modo que os que fracassam em suas ambições ficam sem desculpas. Assim, é bastante atrativo aos homens uma perspectiva que considere seu fracasso como uma sina da qual ele não poderia escapar. Os ataques ao capitalismo, portanto, tornam-se bastante atrativos.
Por último, é importante observar os protestos do autor às supostas alternativas ao capitalismo por pretensas vias não comunistas, mais moderadas. Mises desmascara as falsas pretensões de moderação dos socialistas e intervencionistas, observando que são apenas maquiagens para o mesmo velho comunismo, pois caracterizam-se pela obstrução do livre empreendimento, da livre iniciativa e do livre comércio.
Deve-se dizer, ainda, que o livro é composto, em grande medida, de ensaios introdutórios e complementares. Há uma belíssima apresentação de Hayek logo no início, falando sobre a vida de Mises e seu papel na história do pensamento. Razzo dá uma excelente introdução e contextualização com nossos problemas atuais. Greaves faz um pequeno ensaio também sobre a vida e importância de Mises para o pensamento. Por fim, temos dois artigos no final, um de Israel Kirzner, elencando várias falácias e motivações psicológicas e preconceitos contra o capitalismo, e Jesús Huerta de Soto defendendo a ética do capitalismo e um conceito de justiça adequado com a natureza criativa do homem.
AVALIAÇÃO CRÍTICA
O livro conta com algumas limitações. Primeiro, as próprias teorias econômicas que fundamentam as razões de Mises em prol do mercado não são aqui apresentadas de forma consistente o bastante para o leitor que não as possui concordar plenamente com o autor. Seria preciso recorrer a outras obras. Uma introdução interessante é o próprio 'Seis Lições' de Mises. O autor também entra em algumas searas filosóficas das quais não tem domínio, como quando vai tentar defender o capitalismo de ser materialista e acaba tratando da estética de forma bastante amadora; ou quando vai versar sobre a felicidade; ou mesmo quando fala sobre a liberdade em âmbito filosófico, sem lidar com algumas objeções de progressistas em relação ao conceito de liberdade dentro do liberalismo em geral - e aí se encaixa a questão do utilitarismo, egoísmo e ganância. As motivações psicológicas para o espírito anticapitalista podem, também, não se restringir às oferecidas pelo autor, mas é certo de que em grande medida o ressentimento é um dos principais fatores. Poderíamos acrescentar a busca por justiça e pelo bem, que motiva muitos incautos que não compreendem bem esses conceitos e nem como as coisas se dão na realidade social, mas têm pelo menos motivos mais nobres do que o mero ressentimento. Uma espécie de culpa pelas boas condições oriunda das perspectivas progressistas sobre como as coisas se dão também motivam muitas pessoas, principalmente os ricos, a se tornarem ferrenhos opositores do capitalismo, compondo a famosa 'esquerda caviar'.
Mises também faz, embora breves e passageiras, menções equivocadas com relação à fé cristã contemporânea e ao conservadorismo. Ele ignora o massivo apoio do cristianismo bíblico em relação ao capitalismo, principalmente dentro dos setores do conservadorismo - conservadorismo que Mises interpreta como reacionarismo ou busca de preservação de tudo o que há. Com efeito, os teólogos referenciais que Mises menciona (Barth, Brunner, Tillich e Niebuhr) não podem honestamente ser considerados como representantes do pensamento protestante de modo algum. Curiosamente, não pouco dos maiores pensadores cristãos do século XX estiveram associados ao instituto de Mises, dentre os quais Nash e North.
REFERENCIAL TEÓRICO
Mises é um autêntico acadêmico. Há uma surpreendente gama de referências literárias. Há, claro, referências aos nomes mais óbvios quando se considera uma mentalidade anticapitalista, como Marx e Engels, bem como a outros nomes menos conhecidos. E há, claro, referências econômicas. O livro, no entanto, não é um trabalho estritamente acadêmico, de modo que Mises se dá a liberdade de fazer alusões e citações indiretas abundantes. Como já observado alhures, uma compreensão mínima da teoria econômica dos austríacos pode ajudar, pois está praticamente pressuposta por toda a obra. Há algumas referências históricas que também podem demandar um conhecimento básico dos fenômenos gerais e mais conhecidos.
RECOMENDAÇÃO
Este é um livro desafiador a qualquer um que se diga progressista ou que tenha guarde alguma espécie de incômodo para com os empresários e empreendedores. Ele levanta a grande questão moral do ressentimento, com a qual todos devem lidar. E pode dissipar em nós tal orgulhosa e invejosa disposição. O livro é acessível, na maior parte do tempo, a qualquer um, inclusive quem não teve grandes contatos com os temas, principalmente com os temas econômicos. Serve como uma ótima introdução ao liberalismo contemporâneo. E é interessante até mesmo para o estudioso moralista (o estudioso da alma humana), bem como estudiosos da cultura e da sociedade em geral. Pensadores conservadores e liberais - i. e., estudiosos que se localizam no espectro da direita, de uma forma geral - serão amplamente beneficiados com a leitura, refinando, para além das questões estritamente econômicas, suas defesas ao modelo econômico que abraçam - ou, no mínimo, sendo levados a insights sobre as disputas adjacentes ao teor econômico.