Ana Sá 15/04/2024
O Frankenstein que eu não li versus o Frankenstein que eu acabei de ler
Quando resenhei o livro "O que Aprendi com Hamlet", comentei aqui sobre uma teoria da "não-leitura" de clássicos, do acadêmico francês Pierre Bayard. Basicamente, Bayard defende que as leitoras podem ter o que falar até mesmo de livros não lidos, pois somos expostas aos clássicos de diversas formas ao longo da vida: em aulas na escola, em adaptações para TV, teatro ou cinema, em resenhas... Ou seja, quase sempre existe algo entre a leitura e a não-leitura de uma obra clássica. E que prazeroso foi contrapor a minha não-leitura de "Frankenstein" à minha leitura (tardia) dessa preciosidade escrita pela britânica Mary Shelley (1797-1851).
A minha não-leitura de Frankenstein foi marcada por muito tempo por duas ignorâncias: passei anos sem saber que se tratava de um livro de autoria feminina, passei anos pensando que o "monstro" era, afinal, o tal do "Frankenstein".
Meu desconhecimento sobre Mary Shelley é simples: nosso cânone literário é tão masculino (e branco, vale registrar) que meu inconsciente adolescente (que tem chances de ser um inconsciente coletivo) nem cogitou que um clássico desse porte do século XIX seria assinado por uma mulher. Não porque as escritoras não fossem capazes de tanto, mas porque tudo trabalhou (e trabalha) para impedi-las de chegar lá. Pois bem, por volta do primeiro ano de faculdade, veio a grata surpresa, veio aos meus ouvidos Mary Shelley! Não demorou e também me informaram: "O Frankenstein, que dá nome ao título, é o criador e não o monstro, ok?". Ok... Mas será?
A leitura de fato, página por página, do texto original, eu só realizei agora. Nela, me deparei com a história do jovem cientista Victor Frankenstein, que, dominado por certa ganância acadêmica, recorre a diferentes teorias e perspectivas científicas da época para fazer algo bem simples: criar uma vida, do zero, em seu laboratório. No entanto, bastou a abertura de olhos da criatura sem nome para que Victor se arrependesse do seu err... acerto! A repulsa que ele sente pela criatura é tão grande que ele a abandona já de início, não havendo um minuto de celebração pelo êxito de seu experimento. A partir daí, começa uma narrativa bastante dinâmica, com encontros e desencontros da criatura com Victor e com outras pessoas.
Eu diria que o primeiro choque entre a minha não-leitura e a minha leitura de Frankenstein ficou por conta do imaginário que eu criei da ambientação da narrativa. Por causa de imagens e de flashes de filmes aos quais tive acesso, eu sempre associei Frankenstein a uma história passada em um ambiente escuro, grande parte dela no interior de algo que lembrasse um castelo. Engano o meu! Que delícia me deparar com um romance cheio de trânsitos por paisagens verdes, por montanhas, por florestas, por viagens a pé, por viagens de barco, de navio... Também minha ideia da personalidade da criatura não poderia ter sido mais equivocada: embora a cena icônica da criatura seja mesmo a de um balbuciar confuso e animalizado, no desenvolvimento da obra Mary Shelley nos permite ter um acesso sofisticado a seus sentimentos e pensamentos. Há limites a serem considerados no que diz respeito à forma como essa "voz" chega até nós, mas ela está lá e enriquece muito a trama.
Confesso que durante a leitura eu passei alguns panos pra Mary Shelley, pois há lacunas que escapam à abstração que ficções científicas exigem de nós. Ainda assim, os pontos altos são tão altos... Por exemplo, o retrato das relações acadêmicas e dos supostos indicativos de progresso da época são historicamente e criticamente bem abordados. Ou o que falar da própria complexidade dos sentimentos e das atitudes de criador e criatura: antes, durante o meu processo de não-leitura, eu achei por muito tempo que o Frankenstein era o "monstro"; e agora, após a leitura, eu continuo achando a mesma coisa, pois o jovem Victor conseguiu ser, pra mim, ainda mais repugnante! haha Ou seja, há aqui uma ambiguidade que só bons romances conseguem desenhar.
Ser surpreendida por um livro é sempre bom. Mas ser surpreendida por um clássico - ou, nos termos de Bayard, perceber que tudo aquilo que compõe a inevitável não-leitura de uma obra não é capaz de estragar um bom clássico - é ainda melhor.