Ana 22/04/2020
Um ensaio sobre capitalismo, colonialismo e a sociedade patriarcal: COVID-19
A Cruel Pedagogia do Vírus é um livro bom, extremamente direto e curto. É escrito em português de Portugal e tem uma linguagem técnico-científica.
O autor, Boaventura de Sousa Santos, explica o porquê da atual pandemia do Corona Vírus se propagar de forma tão densa no mundo todo. Ao infectar sem preferências, o vírus atinge de forma mais brutal as classes mais baixas, funcionando como uma espécie de Darwinismo social - que faz uma limpeza na sociedade das pessoas que já não "servem" tanto, visto que, atrasam o sistema econômico. Curioso destacar que, é por esta razão que o COVID-19 ganhou ampla atenção da mídia: justamente porque atinge as classe mais altas do mundo, como o Norte da Europa, onde se concentram as mais gordas carteiras. Se fosse uma epidemia exclusiva da África, por exemplo, não causaria tanta comoção, devido ao preconceito e racismo massivo que um grande número de pessoas ainda carrega.
Nisso, outra colocação interessante, é o fato de Boaventura destacar o Capitalismo como o principal responsável desta pandemia quando acoplado ao colonialismo e patriarcalismo. O que ocorre é que: o capitalismo agregado a estes dois acontecimentos reflete diretamente nas precárias relações de trabalho e, consequentemente, no modo de sobrevivência dos mais carentes da sociedade. Com isso, esses três santos neoliberais (Capitalismo em essência, colonialismo e patriarcalismo) afetam diretamente a saúde, a educação, o convívio social, o financeiro e quaisquer outro quesito decorrente da globalização.
Ademais, o livro é questionador e sensível, uma vez observado que, traz à tona indagações sobre os idosos, as classes mais baixas, autônomos, trabalhadores informais, deficientes e todo o universo que torna inviável a aderência de isolamento social proposta pela OMS - que mais parece pensar que o mundo todo é uma classe média que consegue trabalhar de casa, excluindo, dessa maneira, todos os demais trabalhadores que dependem do trabalho do dia para a fomentação da própria subsistência.
Gostei desse livro por não ter enrolação. É mais uma base informativa para quem já vem estudando todo esse globo de informações. Recomendo.
Abaixo, os grifos que fiz deste livro:
1. Desde a década de 1980– à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector financeiro–, o mundo tem vivido em permanente estado de crise. (p. 5)
2. O objectivo da crise permanente é não ser resolvida. Mas qual é o objectivo deste objectivo? Basicamente, são dois: legitimar a escandalosa concentração de riqueza e boicotar medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe ecológica. (p. 5 e 6)
3. A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandémicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros. Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível. (p. 6)
4. O abrandamento da actividade económica, sobretudo no maior e mais dinâmico país do mundo, tem óbvias consequências negativas. Mas tem, também, algumas consequências positivas. Por exemplo, a diminuição da poluição atmosférica. Um especialista da qualidade do ar da agência espacial dos EUA (NASA) afirmou que nunca se tinha visto uma quebra tão dramática da poluição numa área tão vasta. (p. 7)
5. Para controlar eficazmente a pandemia, a China accionou métodos de repressão e de vigilância particularmente rigorosos [...] as medidas foram eficazes. Acontece que a China, por muitos méritos que tenha, não tem o de ser um país democrático [...] Quer isto dizer que a democracia carece de capacidade política para responder a emergências? Pelo contrário, The Economist mostrava no início deste ano que as epidemias tendem a ser menos letais em países democráticos devido à livre circulação de informação. Mas como as democracias estão cada vez mais vulneráveis às fake news, teremos de imaginar soluções democráticas assentes na democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo. (p. 7 e 8)
6. O modo como foi inicialmente construída a narrativa da pandemia nos media ocidentais tornou evidente a vontade de demonizar a China. As más condições higiénicas nos mercados chineses e os estranhos hábitos alimentares dos chineses (primitivismo insinuado) estariam na origem do mal.(p. 8)
7. A verdade é que, segundo a Organização Mundial de Saúde, a origem do vírus ainda não está determinada. (p. 8)
8. O patriarcado induz a ideia de estar moribundo ou enfraquecido em virtude das vitórias significativas dos movimentos feministas nas últimas décadas, mas, de facto, a violência doméstica, a discriminação sexista e o feminicídio não cessam de aumentar. (p. 12)
9. Qualquer quarentena é sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população. (p. 15)
10. O jornal francês Le Figaro noticiava em 26 de Março, com base em informações do Ministério do Interior, que as violências conjugais tinham aumentado 36% em Paris na semana anterior. (p. 16)
11. No dia 23 de Março, a Índia declarou a quarentena por três semanas, envolvendo 1,3 mil milhões de habitantes. Considerando que na Índia entre 65% e 70% dos trabalhadores pertencem à economia informal, calcula-se que 300 milhões de indianos ficaram sem rendimentos. (p. 16)
12. Na América Latina, cerca de 50% dos trabalhadores empregam-se no sector informal. Do mesmo modo, no caso do Quénia ou Moçambique, devido aos programas de reajustamento estrutural dos anos 1980-90, a maioria dos trabalhadores é informal. (p. 16)
13. A indicação por parte da OMS para trabalhar em casa e em autoisolamento é impraticável, porque obriga os trabalhadores a escolher entre ganhar o pão diário ou ficar em casa e passar fome. (p. 17)
14. As recomendações da OMS parecem ter sido elaboradas a pensar numa classe média que é uma pequeníssima fracção da população mundial. [...] Morrer de vírus ou morrer de fome, eis a opção. (p. 17)
15. Os uberizados da economia informal que entregam comida e encomendas ao domicílio. São eles que garantem a quarentena de muitos, mas para isso não se podem proteger com ela. O seu «negócio» vai aumentar tanto quanto o risco. (p. 17)
16. Os deficientes. Têm sido vítimas de outra forma de dominação, além do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado: o capacitismo. Trata-se da forma como a sociedade os discrimina, não lhes reconhecendo as suas necessidades especiais, não lhes facilitando acesso à mobilidade e às condições que lhes permitiriam desfrutar da sociedade como qualquer outra pessoa. (p. 20)
17. A quarentena não só torna mais visíveis, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas provocam. (p. 21)
18. Enquanto a crise da pandemia pode ser de algum modo revertida ou controlada, a crise ecológica já é irreversível e agora há apenas que procurar mitigá-la. (p. 23)
19. Grande parte da população do mundo não está em condições de seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde para nos defendermos do vírus porque vive em espaços exíguos ou altamente poluídos, porque são obrigados a trabalhar em condições de risco para alimentar as famílias, porque estão presos em prisões ou em campos de internamento, porque não têm sabão ou água potável, ou a pouca água disponível é para beber e cozinhar, etc. (p. 23 e 24)
20. Enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro. (p. 24)
21. O capitalismo poderá subsistir como um dos modelos económicos de produção, distribuição e consumo entre outros, mas não como único e muito menos como o que dita a lógica da acção do Estado e da sociedade. (p. 24)
22. Depois da queda do Muro de Berlim. Impôs-se a versão mais anti-social do capitalismo: o neoliberalismo crescentemente dominado pelo capital financeiro global. Esta versão do capitalismo sujeitou todas as áreas sociais – sobretudo saúde, educação e segurança social– ao modelo de negócio do capital, ou seja, a áreas de investimento privado que devem ser geridas de modo a gerar o máximo lucro para os investidores. Este modelo põe de lado qualquer lógica de serviço público, e com isso ignora os princípios de cidadania e os direitos humanos. (p. 24)
23. Os governos com menos lealdade ao ideário neoliberal são os que estão a actuar mais eficazmente contra a pandemia, independentemente do regime político. Basta mencionar a Taiwan, Coreia do Sul, Singapura e China. (p. 24 e 25)
24. A extrema-direita associa-se a versões altamente politizadas e conservadoras da religião, o evangelismo pentecostal em vários países da América Latina, o catolicismo reacionário na Europa, o hinduísmo político na Índia, budismo radical no Myanmar, o islamismo radical no Médio Oriente. (p. 26)
25. Na presente crise humanitária, os governos de extrema-direita ou de direita neoliberal falharam mais do que os outros na lutam contra a pandemia. Ocultaram informação, desprestigiaram a comunidade científica, minimizaram os efeitos potenciais da pandemia, utilizaram a crise humanitária para chicana política. Sob o pretexto de salvar a economia, correram riscos irresponsáveis pelos quais, esperamos, serão responsabilizados. Deram a entender que uma dose de darwinismo social seria benéfica: a eliminação de parte das populações que já não interessam à economia, nem como trabalhadores nem como consumidores, ou seja, populações descartáveis como se a economia pudesse prosperar sobre uma pilha de cadáveres ou de corpos desprovidos de qualquer rendimento. Os exemplos mais marcantes são a Inglaterra, os EUA, o Brasil, a Índia, as Filipinas e a Tailândia. (p. 26)
26. As epidemias de que o novo coronavírus é a mais recente manifestação só se transformam em problemas globais graves quando as populações dos países mais ricos do Norte global são atingidas. [...] Em 2016, a malária matou 405 mil pessoas, a esmagadora maioria em África, e isso não foi notícia. (p. 26)
27. Os três princípios de regulação das sociedades modernas são o Estado, o mercado e a comunidade. (p. 27)
28. As pandemias mostram de maneira cruel como o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado para responder às emergências. As respostas que os Estados estão a dar à crise variam de Estado para Estado, mas nenhum pode disfarçar a sua incapacidade. (p. 28)
29. No período imediatamente anterior à pandemia, havia protestos massivos em muitos países contra as desigualdades sociais, a corrupção e a falta de protecção social. Muito provavelmente, quando terminar a quarentena, os protestos e os saques voltarão, até porque a pobreza e a extrema pobreza vão aumentar. (p. 30)
30. A quarentena provocada pela pandemia é afinal uma quarentena dentro de outra quarentena. (p. 32)