Coisas de Mineira 14/08/2023
PERIFÉRICOS É UMA HISTÓRIA SOBRE MUNDOS AFETADOS POR OUTROS MUNDOS
Periféricos traz uma pequena cidade rural da América do Norte encontra uma Londres pós apocalíptica em meio a armas, drogas, terrorismo, viagens no tempo…
William Gibson é um dos principais nomes da ficção científica, que ajudou a criar um subgênero conhecido por cyberpunk, com enfoque em “alta tecnologia e baixa qualidade de vida”. 30 anos depois de seu grande sucesso, Neuromancer, Gibson publica Periféricos, que foi lançado pela Editora Aleph em 2020, e com uma adaptação para o Prime Video.
Flynne Fisher mora com o irmão, Burton, e a mãe numa área rural dos Estados Unidos, atolados em uma recessão econômica. Por isso, poucos empregos estão disponíveis, e restam alguns subempregos, como o trabalho com a fabricação de drogas, impressões 3D, e jogos de vídeo game, que acrescentam um pouco de dinheiro para essas famílias.
Burton é um veterano de guerra, que atua em um jogo de realidade virtual. Mas, por conta de um outro compromisso, pede a irmã que o substitua em um dia. Flynne tem certa habilidade com realidade virtual, e aceita a troca. Mas, percebe que as definições são realistas demais, e como se fosse pouco, presencia um assassinato durante o jogo. Ela se assusta e sai rapidamente, e percebe que alguém viu seu avatar. Bom, é só um jogo, não é mesmo?
Em uma trama paralela, conheceremos Wilf Netherton, que vive numa Londres tecnológica, e entre outras esquisitices tem os chamados ‘periféricos’, corpos sem consciência que podem ser alugados. De alguma forma Wilf tem conhecimento do assassinato que foi presenciado por Flynne, e é assim que os dois núcleos passarão a se integrar.
"Os dois sabiam que ela sabia que isso era mentira, mas ela achou que era assim que ficavam as coisas quando alguém que você conhecia matava pessoas e você não queria que ele fosse pego por isso. Eles estavam contando a ela a história como precisava ser contada, e contando de um jeito que não exigiria que ela contasse algo além da verdade em relação ao que eles contaram a ela."
RESENHA DO LIVRO PERIFÉRICOS DE WILLIAM GIBSON
Neuromancer sempre esteve na minha lista de livros desejados, por isso quando vi uma nova publicação do autor – o livro originalmente foi lançado em 2014, trazendo uma capa belíssima pela Editora Aleph – acreditei que poderia ser uma boa porta de entrada para o cyberpunk. Bom, depois de ler Periféricos, ainda não me recuperei o suficiente para ler Neuromancer. Periféricos é de uma complexidade narrativa que facilmente pode espantar até o mais cascudo leitor do gênero. Fiquei completamente perdida nos primeiros 20% do livro, e aproveitei a série do Amazon Prime Vídeo para jogar uma luz nessa história.
Depois que entendi que são dois núcleos, e que não necessariamente estão na mesma linha do tempo, ficou mais fácil prosseguir na leitura. Ajudou o fato de os capítulos serem curtos, deixando a leitura mais veloz, ainda que não necessariamente fluida. Queria muito um glossário, tenho certeza de que me ajudaria a entender melhor a proposta do livro – ao mesmo tempo que entendo a falta dele, porque estou me segurando para não te contar do que realmente se trata essa história.
Ainda que perdida, vale adiantar que o livro mistura à toda tecnologia e escassez de recursos, uma boa investigação, e ainda viagens no tempo – não necessariamente como concebemos esse conceito – além de personagens curiosos e bem cinzentos.
"Ash explicara antes que periféricos, quando sob o controle de IA, pareciam humanos porque o rosto, programado para registrar de forma constante diferentes microexpressões, nunca estava realmente parado. Na ausência disso, ela dissera, eles se transformavam em objetos excepcionalmente perturbadores."
UM MUNDO PÓS APOCALÍPTICO RECHEADO DE TECNOLOGIA
Dois mundos que colidem. O mundo de Flynne poderia ser o nosso mundo, alguns poucos anos à frente. Com uma economia incipiente, e com recursos naturais extraídos até o ponto limite, resta mesmo poucos trabalhos. Guerras distantes deixaram alguns jovens com transtorno pós-traumático, e alguns ainda sem partes do corpo, como é o caso do amigo de Flynne, Conner. Esses jovens cuidam das mães e dos irmãos, percorrem as estradas do campo e bebem muita cerveja.
O mundo de Wilf é misterioso, cheio de tecnologia avançada (vestível, implantada, virtual). Ele bebe demais, dorme com seus clientes e flerta com o fracasso. Um mundo que passou por um evento que mudou completamente a forma de viver e de se relacionar – com os outros, com os recursos, com o mundo. O mais bizarro talvez sejam os periféricos, corpos que podem ser alugados, um ciberorganismo altamente avançado.
Em capítulos curtos e agitados, Gibson liga os dois núcleos. Flynne descobre que as pessoas que ela vê no mundo de Wilf são placebos tecnológicos com a finalidade de trazer certa realidade para esse mundo pós apocalíptico – uma Westworld para narcisistas e oligarcas que comandam a cidade.
"Nada disso está acontecendo porque qualquer um de nós é quem é, o que é. Acidente, ou começou com um, e agora temos pessoas que podem até ser capazes de suspender leis básicas da física, ou de quaisquer formas de finanças, fazendo o que quer que estejam fazendo, quaisquer que sejam seus motivos. Então poderíamos ficar ricos ou ser assassinados, e tudo seria apenas colateral."
DOIS MUNDOS, MUITOS CAMINHOS PERCORRIDOS
Comentar mais alguma coisa poderia estragar a sua experiência. Mas reafirmo que os primeiros capítulos me deixaram com a sensação de luta constante para prosseguir e tentar encontrar vislumbres de entendimento. É difícil, e o autor não está preocupado em te explicar – é quase que um passo de fé. Persevere e poderá vislumbrar a sua genialidade. Em vários momentos, duvidei da minha inteligência…
A segunda metade do livro traz uma enxurrada de personagens, e o mistério em si parece meio esquecido no meio de tanta informação, tramas políticas, traições, tentativas de assassinato, combinações e conspirações. Mas, como já havia persistido, consegui acompanhar todos os caminhos.
Os personagens são frios, distantes, mas acredito que a ideia de Periféricos seja mesmo nos fazer pensar sobre os muitos caminhos que podemos escolher, avaliar os erros, e entender que nossas escolhas nos trouxeram a este presente. Ainda que uma leitura difícil, em alguns momentos até mesmo impalatável, aborda os muitos mundos que podem existir, com uma crítica feroz sobre a sociedade. O autor é tão genial que a bagunça do enredo até passa despercebida, com arcos que se encerram sem muita profundidade, mas com tantas discussões que até se torna um passeio glorioso. Não é para os fracos – e talvez mesmo os fortes não saiam inteiros.
Por: Maisa Carvalho
Site: www.coisasdemineira.com/2023/07/perifericos-william-gibson-editora-aleph/