Lethycia Dias 17/02/2023É possível vencer o patriarcado?Quando li "O guia do cavalheiro para o vício e a virtude", fiquei impressionada com Felicity, que assume um papel muito mais importante do que eu esperaria de uma personagem secundária, ainda mais narrada pelo olhar de seu irmão. Então, quando comecei a ler essa história, eu tinha muita curiosidade para saber como Felicity perseguiria seus objetivos, e o mais importante, se conseguiria alcançá-los.
E acho que o mais interessante nessa história é pensar o "como". Felicity quer se tornar médica, mas será que tentar se submeter à aprovação das autoridades europeias que regulam a profissão em sua época é a melhor forma de conseguir isso? Felicity quer se independente e fazer as próprias escolhas, mas será que isso não é "sonhar demais", quando a outra opção que ela tinha era se casar com um homem que a amava e isso já a colocaria numa situação melhor do que a de muitas outras mulheres de seu tempo? Felicity se interessa mais pelo universo que lhe é negado - o do ensino acadêmico formal - do que pelas atividades que são recomendadas para mulheres de sua classe, como a costura e a moda. Mas será que as atividades ditas femininas de seu tempo são tão fúteis ou inúteis quanto ela pensa? Achei sensacional que o bordado - uma atividade "inútil" na visão da protagonista - tenha se tornado uma saída inteligente na reta final da história.
Outro ponto interessante é o quanto a história se modifica, nos levando a cenários muito diferentes entre si e que vão além do que esperamos a partir dos desejos de Felicity. A busca por uma oportunidade de estudo e trabalho a partir do apadrinhamento de um homem importante acaba se transformando numa aventura que envolve ambição, exploração colonial e os conflitos éticos e morais relacionados à pesquisa da fauna e flora do "Novo Mundo", praticada por homens europeus não tão bem-intencionados quanto nossa mentalidade de hoje esperaria de cientistas. Além disso, existe a questão: quem é que está "descobrindo" algo que na verdade sempre existiu? Quem é que tem o "direito" de classificar novas espécies vegetais e animais e "guardá-las" em coleções particulares para serem exibidas como objetos curiosos e exóticos? É justificável "explorar" uma nova espécie só para atender às necessidades e demandas humanas? Eu me fiz todos esses questionamentos enquanto lia essa história, e garanto que NÃO ESPERAVA por essa parte do enredo.
Assim como no livro anterior, esse aqui também me surpreendeu com seus personagens secundários. Johanna, a amiga de infância de Felicity com quem ela se reencontra, tem um papel muito maior do que o de "escada" para se atingir um objetivo que ela aparentava ter quando é apresentada na história, e conhecê-la melhor até o fim do livro foi uma boa surpresa. Além de ter história e motivações próprias, ela questiona os estereótipos e representações femininas na ficção e a forma como nós a vemos. É a partir do olhar de Felicity que isso acontece, pois, levados pela narração dela em primeira pessoa, nós subestimamos Johanna e depois aprendemos com ela. Outra personagem que tem um papel importante é Sinn, a misteriosa pirata que se oferece para ajudar Felicity e que, até o final da história, deixa dúvidas quanto à sua lealdade. Entretanto, assim como Felicity e Joahanna, o que Sinn busca é a própria independência em um mundo em que somente homens são considerados capazes. Além disso, ela nos leva a conhecer uma representação bem diferente do estamos acostumados em relação aos povos da África Setentrional, nas regiões litorâneas mais próximas à Europa. O núcleo de personagens que conhecemos a partir dela questiona o etnocentrismo e colonialismo europeu.
Fiz uma leitura bem rápida que me divertiu, intrigou, irritou e surpreendeu. O final não trás a realização imediata dos objetivos das personagens, mas apresenta um caminho possível e bastante adequado após todo o caminho que elas cruzaram.
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